sábado, 29 de fevereiro de 2020

Big Pupa: Raisa Faetti e o Direito Orgânico



Estamos vivos, todos nós. Constituídos, risomados e fluidificados na fauna e na flora - também nas condições físicas que permitem que a vida continue a pulsar por aí, nos desejos humanos, estamos a crescer, a multiplicar, a matar, a escarnear: sempre em direção à luz, ao verde ou ao sangue. Assim é a poesia de Raisa Faetti repleta de luz, exoesqueletos, verde e sangue. Cheio de vida. Raisa conclama o "direito orgânico", como diz em seu poema "Gerra dos Torrões" abaixo. Propõe uma tradução entre as lógicas físicas e químicas da fauna e flora em uma lógica semântica da palavra-enzima. O resultado é uma espécie de concretismo orgânico, onde fungos, mamíferos, insetos, crianças, velhos, amantes, ambientes e enfim todos aqueles seres cuja relação é constituída por instinto e pó contribuem com uma indexação quase cientifica de seus traços semióticos. O clima de sua poesia responde exatamente ao bioma que habita a poeta: não o colorido, quente e super saturado das florestas tropicais, mas o árido, profundo, misterioso e super-específico Cerrado. Como uma bióloga do sentido guarda com astúcia suas espécimes em versos, preservando o que ainda há de expressão mental do Cerrado - o bioma mais ameaçado, mais misterioso e mais antigo do continente. Esquisito, super-específico, revelador, pequeno e torto e com raízes super-profundas a poesia de Raisa guarda um manancial sob a aridez propondo ainda o ver e o sentir do ambiente, da poesia, da fauna e da flora: observa os animaizinhos enquanto desaparecem. 


A pedra, de Raisa Faetti


GUERRA DOS TORRÕES


Quando a terra quente
deste brejo urbano
ficou exposta e secou
as crianças correram
para reclamar ao dono
seu direito orgânico
da exploração da área

Declarou-se a Guerra dos Torrões
punhados de frutinhas
roubadas no mato
deixavam os dias
mais adstringentes
e sustentavam as horas
dos soldados em batalha

Prenderam os insetos 
em caixinhas de fósforo
para futuras pesquisas
sobre seu potencial bélico
enquanto os últimos girinos
capturados com armas de cozinha
viravam munição

O pelotão tomou a casa abandonada
À noite ouvia-se o tropel
tudo se apertava:
coração, pernas e calor
Até os cães latirem
para alguma coruja inocente
que logo era bombardeada

Ao fim de treze anos 
a rua inteira e as fachadas
todas destruídas
houve uma reunião com 
a alta cúpula dos soldados
e a cansada diligência dos pais:
Era chegada a hora do banho

***

PALEOZOICO

Há um embargo antigo
no banho de lavadeira
que confunde o horizonte
e todo animal se arrepia

***

CORTEJO

O cortejo passando
lixivia estruturas
pinga resistência

O cortejo confunde
intermitências
resiste pela metade

***

CAÇADA

de cima do jirau
ecos de furou panela!
e o bicho-estanque passa
assim como um peixe
pula entre árvores
uma leve gastura

***

PANTANAL

Na fronteira mais ao
teiús descorados
e o restante dos bos
metabolizam

paus pretos virados no chaco
cachimbam a mesma torção

***

MARCENARIA

Pausa na leitura
eu, esticada no sofá
penso em você:
como deve ser bonita a execução
do ofício santo da marcenaria

Fico desejando ser
fina e reta
a tábua que você alisa
calcula e esquarteja

Nessa hora da luz do dia
tomar vinho na taça do freguês
transformar em peça de deboche
a acabar com o cristo marceneiro burguês

Olho para o livro novamente
e para a ponta dos dedos:
você vai adorar 
o meu esmalte preto


***

ISLERO

"No perder de vista al toro"

Mesmo que seja rombo
o animal que pasteja
é preciso sangrá-lo
com o cheiro antigo
da morada limpa

Assim como numa igreja
o que mancha a roupa
do fiel imprudente
é a parede recém caiada
e não o santo empoleirado

***

CENA DE TERROR I


Pegaram os três
mas um estava em ovo ainda
este foi só trincar

o restante tentou se defender
com os ...
_É difícil saber.

Mas depois acharam 
as orelhas e um rabo
no outro lado da linha.





quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

haiga


BIG PUPA: Lucas Ferreira


Uma poesia que reside entre as marteladas do bebop e a experimentação dodecafônica, entre o cotidiano e a desrealização, assim podemos dizer sobre o trabalho do poeta, músico e marceneiro Lucas Ferreira.
Seu processo poético é semelhante às antigas oficinas mineiras, onde o mestre construía seus objetos através da transformação de peças diversas disponíveis para uma finalidade específica. Aqui, porém, o trabalho é com a linguagem: partindo de fragmentos da vida habitual, Lucas esvazia os significados comuns para encher seus versos de impossibilidades lógicas que atiçam o leitor e onde a preocupação é mais estética que discursiva.
Pausa-
--
³
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.
.
.
Não é a poesia pura, a poesia pela poesia. Trata-se da poesia-limite. Seja nos rincões mais podres da cidade, na delicadeza do cerrado mais raro, é o exato limite onde a poesia acontece, onde a síncope desperta, a paisagem se rompe e a serra corta. Tanto faz se é o poema ou se é o homem.
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EPICENO
minhas bananeiras
bateram em revoada
ao salar
Atacama
parando o ali
o comendo a vi
onde esparzindo flechas
viaja orvalho
o bago
de tudo
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XXx
...
de
relance,
uma cabeça de Esparta
vai passeando
amalgamada
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PRONOMES EM TRATAMENTO
Vossa cabeça de viga
Vossa cabeça de asma
Vossa cabeça de gude
Nossa cabeça no talo
Tua orelha de porco
Tua orelha de átomos
Tua orelha cheia de cuspe
sua orelha no pasto
Tua boca situa
Nua boca no ralo
Sua boca de nichos
Tua boca sem lábil
Seu coração de ripa
Meu coração
diacho
-----------------------------------------
III
é necessário apenas quatro paredes p/
fechar homens num salar
eles s el es le s
sele
lese
agora microbactérias
agora evoluídos
adaptados
de boca fechadas
de olhos esbugalhados
de cu de ferro
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Comentado por
As canetas andam por aí, mas é passo a passo.
Melhor que seja assim, sem vertigem.
...
Vou apenas relembrar aquela viagem pra Tóquio em 96,
luzes
e
samurais espremidos por metro quadrado ____________________________________________
_________________________________________
_________________________________ aquilo sim, foi uma experiência literária!
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9 GRAUS
creio numa parte da velhice
no seu despertar cedo
e rezo baixo pela posteridade
assim quero acordar
às 5
estar de pé
respirando
enquanto os moradores ainda entulhados
sonham
olha lá!
um Matusalém
com as suas lãs camuflantes
cores de pombos
cores de feira
cores da torre da igreja
trajando uma cidade invisível
tal corpo
uma metade meditando
outra passeando a 2, a sós
indo pra missa, pra padaria,
as voltas as voltas as voltas na praça
contornando a si próprio
uma translação estranha
nas proximidades asperas
do sossego
olha ele
comentando o cafézinho
um culto a alma persistente
a mão direita trêmula
onde o signo agora descansa
na sua frase de efeito:
poucos homens conhecem o "arrebol"
aquele andarilho rarefeito
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VIRADO DE MESA
II
agora o branco isopor esfarelado
e inúmeras bolinhas leves
tocadas pelo mormaço
saltam avante pela rua
III
será que um dia
para trás do bloco
os foliões
seguirão ou darão voltas?
(...)
no retornar
precisarei desfazer de algumas articulações
lançando-as com força para fora do vagão
IV
daí o ato do futuro
as próteses capotando pelos trilhos
o metálico e o coro
a umidade oxidando aquele zinco
us anos luz
V
aquela paixão louca
o bate-estaca
a neurose e seu peso de farinha
o medo esperando o paciente
VI
aperto bem a presilha
e o salto
é um mergulho numa sopa
de batatas macarrão e porco
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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

haiga

de tempos em tempos as mulheres perdem as mãos

de tempos em tempos as mulheres perdem as mãos
o que não quer dizer que elas não continuam escavando até que as mãos
voltem
rodando um mundo e meio pra trocar a pele do corpo todo
nos dias em que você acorda de madrugada são os mesmos dias em que as
ondas desdobram sua força expulsando as cabeças pra fora
até mesmo o mar fica a sós com suas criaturas
todos já fazem suas apostas para a nova década
veja só, já se passara mais uma e sabe-se lá o quanto as pessoas entenderam 
o significado de...
você por acaso percebe que o amor se derrama como os oceanos sobre o mundo
a menina Ana canta sobre ele desde que canta nas minhas caixas de som
é janeiro e agora já chove todos os dias com hora marcada na cidade
o homem com testa marcada de teorias diria que isso é só o começo
as crianças que agora margeiam a orla da terra crescem com os olhos do avesso
desvendando o silêncio das árvores
o pequeno grande Artur com as mãos cintilantes de esperança e genialidade
sustentando-se sobre um par de inquietos
eu ainda surpresa com o desdobramento das coisas
parece que passou meia dúzia de anos desde que cheguei aqui
de você sentado a pouco mais de três palmos de distância de mim
e agora te vejo com intervalos menores que doze horas
do outro lado do oceano a Austrália também ardendo em chamas
eles lançando mísseis com a mesma facilidade que um garoto atira pedras
com um estilingue ao vento
enquanto isso ora o tempo amacia ora chicoteia as palavras cravadas nas 
línguas de toda a gente
isso diz mais de silêncio do que qualquer outra coisa que pareça
do tempo que passamos submersas na solitude
mergulhando, ruindo pra só depois retornar ás ondas rasas na superfície
até o dia de voltar ao fundo de novo
roer as unhas não tem a mesma função que entrar nas próprias águas
é preciso mais que o fôlego de uma foca
pra passar tanto tempo debaixo d'agua
e voltar viva

MARCELA MELO


(Foto do Luciano Candisani de uma das
mergulhadas do mar de Jeju (Coreia do Sul)

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

haiga

gramofone

já no final da vida 
quando entardecia
minha vó colocava o disco do alcides neves
de 1979
pra junto de meu avô
(emparedado nessas tardes)
lembrar quando ambos tinham força
pra enfrentar suas famílias
o ai-5, a falta de dinheiro
e tantas outras coisas

o disco, paciente, lânguido
entre riscos e faixas quase perdidas
os adormecia antes mesmo da terceira faixa
e era minha mãe que sempre mudava
para o lado b

de certa forma
em algum dialeto inexplicável
aquela força que parecia ter passado
se fazia possível, traduzida

o que me causava espanto eram os indicadores se triscando
trêmulos
a quentura de uma mão na dormência da outra
firmando seu pacto
íntimo

o silêncio daquelas tardes também era
uma história com seu próprio idioma
acendo as lâmpadas
as luzes me lembram
que nem mesmo as poltronas ou o gramofone
(o tempo conferiu todas as bagagens)
ninguém ouve mais alcides neves
e agora sou eu que mudo os canais pra minha mãe

as luzes me lembram
como velas no quarto escuro
que aquela força
como um pacto, como um disco
é hoje ausência química
e o sofá que ocupa o espaço das velhas poltronas
tem mais que o indicador
levemente encostado no meu

há dias - tu sabes- que é o sofá que repousa
sobre meu peito ou sobre minha coluna curva
ou sobre meu ânimo limítrofe

e eu já nem lembro mais
cada porquê de cada tatuagem
que guardei pra fazer um dia
o tempo e seu ritmo
e nada e seus signos
aos olhos de meus avós
voltos postulando uma lembrança
e aos meus
nada
o seco e absoluto
pois há muito medo de ser
o mínimo

adormeço
parece o fim
congelado em nuvens ocres
e já não é possível
distinguir as faixas 
mudar para o lado b
trocar de canal sem ajuda
ou lembrar de quando éramos fortes

ITHALO FURTADO





Ithalo Furtado possui três livros publicados - Uma pedra em cada por enquanto, Dolores )e os remédios pra dormir) e Móveis empoeirados no peito, o mais recente. Seu trabalho sugere novas possibilidades de contar a mesma história e cria um ambiente transmídia que envolve outras formas de arte como música, cinema, fotografia e artes visuais. Há quase um 1 ano desenvolve a intervenção urbana Escuto Hitórias, Escrevo Poemas, onde transforma as histórias das pessoas nas ruas em poesia. 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Poema de menor

Por aqui não há cantigas de ninar.
O que nos acalma 
É sempre o cheiro da pólvora no ar.
Nossas pequeninas mãos 
Carregam pesadas munições.

Somos os órfãos deste solo
Filhos da pátria armada, encarcerada.

Nascemos longe do centro 
Crescemos no centro do caos.
Alimentamos de sobras.
dos excrementos sociais,
das culturas marginais.

Senhores,
Querem mesmo se livrar de nós?
Saiba que nós somos um erro estrutural,
Células cancerígenas de seu edifício social.
Nós perpetuamos como pulgas
Empesteamos seu colchão.
-Não há sono tranquilo-
Ouça o som seco do gatilho.
Mataremos ou morreremos pra roubar
Os sonhos que não podemos comprar.

Deem as sentenças,
Promulguem suas leis,
Seus códigos penais,
Construam seus presídios,
Acionem seus alarmes,

Levantem seus muros,
Seuas cercas elétricas,
Seus cães de guarda,
Seus guardas uniformizados
-Nada disso adiantará-
Os senhores, sem saber, sempre hão de gerar
as bestas que te mordem a jugular.

Poema de José Carlos Balieiro


Pic. Sidney Amaral, 2015
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