quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Agente tamo junto: Como era bom escrever errado.





    Uma coisa há muito me incomoda, mas só recentemente é que me tirou noites e noites de sono: a gente estar errada ao escrever agente.

    Nunca fui bom em escrever certo, minha tendência à poesia vem mais pela transgressão e imaginação do que pelo "amor às letras". As quais, aliás, nunca tive um relacionamento lá muito afeito, nem cultivo por elas muito respeito. Escrevia errado que só. Inclusive agente. Mas comecei a reparar que as pessoas quando percebiam que algo estava errado não conseguiam tirar proveito de nada que havia ali, sentiam alguma coisa no estômago que eu num sei bem como descrever, e faziam uma careta feia de nojo como se a gente tivesse levado um pedaço de carne podre às suas narinas.

     A poesia, no entanto, parece libertina. Quase achei que poderia ali fugir ao imperativo certo/errado. Ledo engano. É lá que as coisas realmente se parecem com o que são: leis arbitrárias e sem sentido e zumbis (até porque a linguagem é isso, né?). Ora, um poema hoje em dia aceita tudo: dialeto virtual, regionalismos, onomatopeias. Mas insira um "agente" sem trocadilho intencional nem qualquer contextualização... A sarjeta e o desprezo o aguardarão. Lulu Santos pagou os capangas poetas marginais apenas para assassinarem a métrica que já estava agonizante, a gramática eles apenas assaltaram.

     Esses dias mesmo fui confrontado a isso: no meio de uma conversa falávamos da beleza das interações linguísticas e um bom estudante das humanas declarou que atualmente estava com muita preguiça de errada escrita. Disse a ele "mas é belo & belo" e perguntei "coisas como o que?". "A gente junto não dá pra aturar" - respondeu o estudante.

       Sim o a gente. Essa expressão (é isso mesmo, uma expressão?), penso, é onde se encontra o ponto de tensão mais exacerbado entre a galera do fundão e a professora de óculos e saia azul opaco abaixo dos joelhos. É aí que a academia segura as rédeas, mas não me posicionarei (contra o pensamento endêmico acadêmico), tenho sofrido muito por tomar tantos posicionamentos. Todos eles de um extremo radicalismo lunático. Depois de ser tantas vezes reprovado na academia estou começando a aprender a manter um distanciamento crítico, a me manter separado. Embora lá no fundo minha filosofia de vida que clama por amor e paz e acredita que somos mutantes uma pessoa só ache que a gente tem mais é que ficar tudo junto.

      No mais o agente torna todo mundo senhor de si quando tamo junto (e não todo o mundo). Agente de seu próprio destino, o que seria inevitável, se não viesse sempre uma carranca dizer-nos que temos sempre que separar tudo a fins de catalogação. Até porque quando escrevo que a gente foi à padaria sempre fico os vendo descer a rua por entre as grades da janela.

 
                     "Até porque quando escrevo que a gente
                foi à padaria sempre fico os vendo descer
                 a rua por entre as grades da janela." 
  

     Não vos parece que são eles sem mim: a gente? A gente desceu do ônibus é uma frase vista de cima, por um narrador onipresente ou de uma sacada de apartamento no centro. É diferente do a gente que agente diz e por isso justifica escrever de outro jeito, mesmo que não saibamos justificar. Agente desceu do ônibus, eu, o Beto e o Gilmar e fomos orçar a camisa da formatura - né não, terceirão! Estamos nós juntos, misturados e agindo coordenadamente sem a necessidade de um líder proclamado, portanto, imbuídos de poder.

      Acredito mesmo nisso. As línguas refletem nossa ideologia: movimento oposto à esse que tenta separar a gente seria o movimento rastafarI que inseria a palavra "eu" em quase todas as palavras.

       Mas não levem isso muito a sério, são só divagações de alguém que escreve muito e que demorou pacas para aprender os adornos mínimos exigidos para veicular impulsos em letras. Lembro de um poema em que escrevi "atoras francesas antigas" e me doeu muito arrumar. Mesmo sabendo o certo e sendo o certo mais bonitas e curvilíneas e meigas: as atrizes são muito mimadas! Queria me referir - mas que coisa impossível! - às atoras mesmo.

      Quanto às vírgulas, tenho me acostumado, a elas, quando não sei bem, quando colocar, saio virgulando tudo, de modo, que parece que a gente tá, viajando, naquele ponto da rodovia, onde ela atravessa cidade, e tem quebra-molas, pra porra!
   
        Antes preocupava apenas com o espírito do escrito e que ele (como eu) estivesse usando uma roupa velha rasgada e que lhe assentasse bem. Devo admitir que sou mais versado em dar nó em gravata de texto do que em amarrar meus tênis (embora saiba bem pouco sobre as gravatas dos textos). Aos textos são exigidos, além de se passar e engomar, que a meia combine com o detalhe do colarinho. Deve ser por isso que os capitalistas e operários acham escrita coisa de moçoila. 



Vinicius Tobias
      

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

domingo, 30 de novembro de 2014

Igor Alves

VOSSAMERCÊ
VOCEMECÊ
VOSMECÊ
VOMECÊ
VOCÊ
OCÊ

C
caro
GRAMATEMÁTICO
barato
dexa d c quadrado
até a língua anda
triân gula
pro lado mais fácil
no tempespaço.
O oral
não tem hora
ora bolas
(é sempre + legal)
O contato
é linguagem
universal.

Duggan

Poema da série "7 Intromissões"

II
Tem algo de quebra na garganta
que se esconde enviesado
que cheira corte
e notas
Era uma alegria tão grande
que foi brincar de gangorra num caibro
pendurada por um lençol limpo
num balanço de artéria
e amores

Philip Gustton



terça-feira, 25 de novembro de 2014

Pindurados na venda do Seu Pinto:



à lá Oswald
triangulado &
narigudo


consensuais
com sensuais
consenso, uais!



*   *   *



poema de mapa
poema piada
poema primata


se nariz grande 
fosse sinal de pauzão
o brazil dava no rabo da América


*    *    *


à lá Beleléu e o chueck chueck
do sexo mindim do mineirim
que se decepciona (mas logo se conforma!)
com a meia no sutiã


 
onomatopeitiza  
ônomitopeitico   
sônomatoeupeito

 

*     *     *


a lá Bandeira


oh, que bão
é a libertinagem, ainda 
que seje d'manhã-cedim!         



Vinicius Tobias 








 Ah, mardita pinga que nos vacaia
quantos menos esgarniçado iam rí
se o mundo dispensa esse fogo de paia! 

domingo, 23 de novembro de 2014

Lamento olhando pela escotilha - Raisa Faetti




No singelo prosseguir, ao estonteante Deus clamei
Que deu luz aos verdejantes prados em minha mente
Máquina de caminhos espaciais tão doentes
Foste tu, Apollo, quem deitaste as ilusões que tanto amei

Trocaste os montes belos e delicados de nossa paisagem
Pelas bruscas e solitárias escarpas da Lua, ó quanta vaidade!
A perversa disputa entre NASA e Sputnik era de fato verdade
Minha lira agora lamenta a gélida e russa passagem:

Teu esforço, louro Apollo, não passou de mesquinha resposta
Apesar de tamanha glória entre as Américas.
Pois anos antes, um velho Sputnik havia já levado a aposta

Para esconder a covardia dos homens e o horror das histéricas
Elegeram o brilho da mais bela pastora, de forma cruel e imposta
Depois de ceifarem sua vida, vibraram em gargalhadas quiméricas


*pic: Raisa Faetti

Allan Sieber


Coisificando

LEFT: Photograph of Lucian Freud (detail) by John Deakin, circa 1964.


RIGHT: “Three Studies of Lucian Freud” (detail) by Francis Bacon, 1969.

sábado, 22 de novembro de 2014

Ode à crise de 1929 - José Carlos Balieiro



Sentem-se à mesa farta.
Estamos fartos da vida.
Submetemos tudo.
Nós, os outros, as coisas, os deuses.
Mas nessa época, a essa hora do dia
os homens e as máquinas ou a máquina homem
tramam uma nova invenção para facilitar nossa vida
um novo sabor para enfeitar nossa mesa.

Ouçam!

São as engrenagens, elas vão ranger.
As engrenagens dentro de você.
Uns perecem pela miséria, outros pelo excesso.
Mas todos somos filhos da máquina.
Que a máquina seja louvada, o progresso, amém.

Entre as engrenagens
vai pela noite elétrica o poeta
na sua velha manufatura interior
tecendo amores e ódios, a espreita do colapso.
Sonhando com empresários suicidas
qua saltam da janela dos altos edifícios
sobre o formigueiro convulsionado
da massa de cidadãos raivosos e famintos.
Saúda a fome esbelta e insolene
que sai dos guetos e desfila pelas ruas dos grandes centros
A bela musa de seus versos aguarda
na fila da sopa gratuita.
À sua frente um burguês falido.
À frente do burguês,
um alcóolatra esfarrapado e apodrecido.
A humanidade toda é uma grande família.
Uma família desunida e degenerada.
Mas ainda assim uma família.
Vai cismando o poeta.


 *pic. Weather: Continued Rain

**Retirado do zine homônimo.
São João del-Rei 2013
 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Manifesto Utópico-Ecológico em Defesa da Poesia & do Delírio - Roberto Piva

Invocação


Ao Grande deus Dagon de olhos de fogo, ao deus da vegetação Dionisos, ao deus Puer que hipnotiza o Universo com seu ânus de diamante, ao deus Escorpião atravessando a cabeça do Anjo, ao deus Luper que desafiou as galáxias roedoras, a Baal deus da pedra negra, a Xangô deus-caralho fecundador da Tempestade

Eu defendo o direito de todo ser Humano ao Pão & à Poesia
Estamos sendo destruídos em nosso núcleo biológico,
nosso espaço vital & dos animais está reduzido a
proporções ínfimas
quero dizer que o torniquete da civilização está
provocando dor no corpo & baba histérica
o delírio foi afastado da Teoria do Conhecimento
& nossas escolas estão atrasadas pelo menos cem anos
em relação às ultimas descobertas científicas no 
campo da física, biologia, astronomia, linguagem,
pesquisa espacial, religião, ecologia,
poesia-cósmica, etc.,
provocando abandono das escolas no vício de linguagem &
perda de tempo 
em currículos de adestramento, onde nunca ninguém vai
estudar Einstein, Gerar de Nerval, Nietzsche,
Gilberto Freyre, J. Rostand, Fourier, W. 
Heisenberg, Paul Goodman, Virgílio, Murilo
Mendes, Max Born, Sousandrade, Hynek, G. Benn,
Barthes, Robert Shckley, Rimbaud, Raymond
Roussel, Leopardi, Trakl, Rajneesh, Catulo, Crevel
São Francisco, Vico, Darwin, Blake, Blavatsky,
Krucënych, Joyce, Reverdy, Villon, Novalis,
Marinetti, Heidegger & Jacob Boehme
& por essa razão a escola se coagulou em Galinheiro
onde se choca a histeria, o torcicolo & repressão
sexual,
não existindo mais saída a não ser fechá-la &
transformá-la em Cinema onde crianças &
adolescentes sigam de novo as pegadas da
Fantasia com muita bolinação no escuro.
Os partidos políticos brasileiro não têm nenhuma
preocupação em trazer a UTOPIA para o quotidiano
Por isso em nome da saúde mental das novas gerações
eu reivindico o seguinte:
1 - Transformar a Praça da Sé em horta coletiva & pública.
2 - Distribuir obras dos poetas brasileiros entre os 
garotos (as) da Febem, únicos capazes de
transformar a violência & angústia de suas almas
em música das esferas.
3 - Saunas para o povo.
4 - Construção urgente de mictórios públicos ( existem
pouquíssimos, o que provo que nossos políticos
nunca andam a Pé ) & espelhos.
5 - Fazer da Onça (pintada, preta & suçuarana) o
Totem da nacionalidade. Organizar grupos de
Proteção à Onça em seu habitat natural. Devolver
as onças que vivem trançadas em zoológicos às
florestas. Abertura de inscrições para voluntários
que queiram se comunicar telepaticamente com
as onças para sabermos de suas reais dificuldades.
Desta maneira as onças poderiam passar uma
temporada de 2 semanas entre os homens &
nesse período poderiam servir de guias &
professores na orientação das crianças cegas.
6 - Criação de uma política eficiente & com grande
informação ao público em relação aos
Discos-Voadores. Formação de grupos de contato
& troca de informação. Facilitar relações eróticas
entre terrestres & tripulantes dos OVNIS.
7 - Nova orientação dos neurônios através da
Gastronomia Combinada & da Respiração.
8 - Distribuição de manuais entre sexólogas (os)
explicando por que o coito anal derruba o Kapital
9 - Banquetes oferecidos à população pela Federação das Indústrias.
10 - Provocar o surgimento da Bossa-Nova Metafísica
& do Pornosamba.
O Estado mantém as pessoas ocupadas o tempo integral
para que elas NÃO pensem eroticamente,
libertariamente. Novalis, o poeta do romantismo
alemão que contemplou a Flor Azul, afirmou: "Quem
é muito velho para delirar evite reuniões juvenis. Agora
é tempo de saturnais literárias. Quanto mais variada a
vida tanto melhor".



 *pic: Os poetas não saem do mato.
 
  
**Retirado da postagem do #TEIA www.teiaufmg.com.br/ 

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Nossa última homenagem.





   

            por quantos adjetivos careados anseia um poeta morto?
        alguns mais instrutivos que Manoel?
                              mais veementes do que de Barros? 


Mugido





                          


Solidão - William Teixeira

No pé daquela serra
Sentado na beirada da fogueira
Tomada por aquela noite profunda e rodeada por aquelas matas antigas
 Que encobrem uma gróta fechada e um velho caminho de pedra

Os antigos diziam
Que ali já teve fartura,
 Onde levava minério e trazia estórias
Onde passava a boiada
Discanbando morro a baixo
Seguido dos gritos e assovios
Hoje apenas os rastros

O fogo revolta
 No estralar da lenha e no trepidar das brasas
Um momentâneo silêncio emana 
Olhos arregalados, fixos, porém cansados
 Juro pelo sagrado
 Que ao passar de olhos,
Por um momento enxergo
 Sua silhueta por trás da claridade
As vezes se apresenta como uma jovem de belos traços
Lembranças de um passado,
Aparece rapidim e some pro meio do mato
 As vezes aparece como uma velha
 O arrepio sobe
 Essa não vai embora, sempre trás mau agouro

 Ao longe uma luz ilumia,
Na cozinha do casarão 
O cheiro da carne do porco vai longe

Quando se esquece de mim
Margeando a mata do descampado ela vai
Rumo à janela espreitar
Com ciúme da alegria
E com fome da carne de porco
 

sábado, 15 de novembro de 2014

Descarte

a canela
e
o eu

eu, sintoma duvidário
entre as cambitas magras
e a dúvida hiperb(c)ólica...

fico com elas,
pau pra toda obra.



René Descartes duchampiado

domingo, 9 de novembro de 2014

E porque é que o que fica não está nos livros?

Resíduo

    Carlos Drummond de Andrade


De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu
nos olhos do rufião.
Da ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
Roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros - ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco do teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo 
No pires de porcelana
dragão partido, flor branca,
Ficou um pouco
De ruga na vossa testa.
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas porque não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
Nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim, de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, ficou um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.



E por que é que o que fica não está nos livros?

Vinicius Tobias

    "Oh, abre os vidros de loção / e abafa / o insuportável mau cheiro da memória", mas é apenas de memória que Drummond fala no poema Resíduo? 

     O eu-lírico, em um momento de mágoa, melancolia e clarividência descreve o processo de coisas que ficam e geram resíduos, indo e vindo entre o reino material e o psicológico. No entanto, esse ir e vir representaria uma sinceridade sensorial livre de preconceitos cartesianos, fundamental a quem pretende entender tais lógicas subjacentes. Como diz Manoel de Barros "Conhecimento é parede", ser árvore e desaprender são necessários quando se deseja lançar um olhar visceral sobre as coisas e os processos. 

    "ser árvore e desaprender são necessários quando se deseja lançar um olhar visceral sobre as coisas e os processos"


   O medo, o comichão no abdômen presente nesse poema parece demonstrar que o eu-lírico-melancólico se encontra em frente a um mistério universal. Tentando listar e descrever as coisas que ficam, e vai fundo, apresenta o que fica mesmo, aquilo que fica pouco, muito pouco, e depara-se com uma confusão que se faz também entre o que fica de uma forma universal e o que é sentido pessoalmente, apontando um sentido abrangente da memória, classificando tudo no mesmo pacote infeliz, mas que porta, intrinsecamente o puro e o natural, se atirando à desconhecida união de tudo.

     Esse processo é desenrolado na sétima estrofe, e, se antes poderíamos pensar que todos os resíduos marcam aquele indivíduo em sua profundidade psicológica, agora ele pergunta se também não ficaria um pouco dele no trem que leva ao norte, na consoante, no poço; ou seja, matéria não-consciente. Isso acaba por re-significar e abranger as estrofes anteriores. Sobram coisas enquanto entidades, enquanto matéria (um pouco de teu queixo no queixo de tua filha), enquanto lembrança, enquanto realidade onírica sub-consciente (trecho que complemente a gota absurda) e esse meio termo entre consciência e matéria (a matéria da consciência nas "folhas,  mudas, que sobem") desenvolverá o metafísico.
       
     E nada melhor do que esse  medo mineiro de seguir em frente, no cuidado ao falar, da dificuldade de definir, do ir e vir diletante daquele que percebeu algo inefável e sabe que o melhor a fazer é tomar todo o cuidado ao concretizar aquilo verbalmente de tão fugidia e sensível que é aquela relação, usando-se desse temor para descrever a cadeia de erros de uma ordem não conhecida que sobra do que sobrou (da ternura, embora sobre um pouco, é muito pouco). A palavra erro aqui é escolhida pelo tom predominantemente negativo do poema, é palavra usada por Drummond em outro poema de mesmo tom, o entusiástico "A flor e a náusea". E vale lembrar que em contraposição ou complemento (parece aqui que as prerrogativas tanto se contrapõe quanto se complementam, ou melhor se complementam pelo processo de contraposição) aos maiores erros humanos - medo, asco, ponte bombardeada - são colocados elementos puramente naturais e bons - rosa, grama, botão. Gerando assim um deslocamento da dialética bem/mau para uma espécie de erro agente/natural imóvel. 

     Logo após a pergunta que o eu-lírico faz se também dele não sobraria um pouco, o erro metafísico materializado em lixo fica oscilando na embocadura do rio, "não está nos livros" é o verso que complementa essa imagem; essa frase, é importante dizer, também se encontra no poema "A flor e a náusea".



                 "Ora, o livro é o símbolo máximo da
                 práxis humana, quando se aponta que
                aquilo que sobra não está nos livros se
                consta o completo fracasso do ser humano
              em lidar com essa realidade sutil, subjacente
              e regente dos movimentos"  

    Ora, o livro é o símbolo máximo da práxis humana, quando se aponta que aquilo que sobra não está nos livros se consta o completo fracasso do ser humano em lidar com essa realidade sutil, subjacente e regente dos movimentos: não é possível trabalhar em nível consciente com a maneira de o que passa marcar e deixar seus resíduos no eterno Devir. Na próxima estrofe desse "abrir o jogo" que é dizer que o que sobra não está nos livros ele caminhará na descrição daquilo que sobra tanto enquanto intangível tanto como memória (e qual é a diferença entre os dois? nossa consciência? nós? que precisamos de paliativos para estancar o mau cheiro da memória?).

      A meu ver essa é a grande questão do poema, abrange-se o problema das coisas que sobram até o ponto mais subjetivo, mais sutil, metafísico. E a abrangência se dá por uma espécie de não saber definir e identificar a natureza do que sobra. Não saber é a única base sobre a qual repousa a sabedoria. O poema até a oitava estrofe vai abrangendo e abrangendo, mas, ao chegar ao limite subjetivo máximo ele se contrai e oscila, e, depois da próxima torrente descritiva daquilo que sobra, pede para abrir os vidros de loção e estancar o mau cheiro da memória.

        Isso pode ser visto como a descrição dos ciclos de erros que se perpetuam até identificar as causas residuais que os circundam. O lixo, o podre, no entanto, não será revirado pois logo o poeta clama para que se abra os vidros de loção, uma artimanha. Disfarçar os "mau cheiros" do remorso é não mudar o curso das marcas e resíduos, é preguiça de fazer uma boa faxina, é falta de vontade, e não saber por onde ir, é um paliativo, é a impossibilidade de superação (absurdo).

              "ou o lixo humano proliferará ratos ou, 
              se ele abstiver-se de agir, talvez outra
             flor nasça para o poeta comemorar."  

      A última estrofe descreve onde as coisas ficam. E, como dito, elas ficam sob coisas de aspecto puramente naturais, "ondas ritmadas", assim como ficam sob coisas de aspecto humano, "igrejas triunfantes", a listagem aborda qualquer aspecto, as coisas, ficam, um pouco, sobre todas as coisas.

       As cadeias de erros talvez sejam as terras morbidamente férteis de onde brotarão os novos erros. Às vezes um fragmento, "um botão ou um rato", pode revelar esse aterrador destino; algo ficou, construiu os erros do presente, e disto algo restará. Identificamos essa transitoriedade cíclica com os seres vivos que encerram o poema, o rato - erro agente - ou o botão de flor - natural imóvel. A referida dialética é retomada, ou o lixo humano proliferará ratos ou, se ele abstiver-se de agir, talvez outra flor nasça para o poeta comemorar.   

sábado, 1 de novembro de 2014

Três Convites de Entrada

  

*Comentário dos auto retratos: Na primeira foto o espectador adentra seu corpo. Somos objeto de seu olhar. Além disso, a madeira da cama é um objeto fálico entre suas pernas. Dando virilidade e feminilidade ao corpo como a boca e tromba de uma deusa hindu. Na segunda fotografia há quatro mulheres. Duas dentro do espelho, a narcísica e a fotógrafa. 4, a simetria do número par é muito sensual. Seu corpo é como "O Violino de Ingres", olhar de Man Ray sobre a "Banhista de Valpinçon" -  claro, esta mulher atende aos padrões de beleza de nossa época, ao contrário das gordinhas do neoclassicismo, mas é tão artística quanto elas. se a arte tem a capacidade de se presentificar eternamente - ou não - confesso não saber a diferença entre a imagem de seu corpo real e seu corpo artístico. O corpo real talvez seja tão eterno quanto esta fotografia moderna neoclassicamente. O mais grandioso nesta segunda obra de arte é a quebra do lugar comum com o riso e a ampliação do ambiente pelo espelho que dialoga com a janela, perdendo assim a identidade de espelho. O cenário também diz muito. É seu quarto? Livro, nudez e janela. Três convites de entrada.
-Voyer Cego



Uma mulher espera por mim
Walt Whitman

Uma mulher espera por mim, nela tudo se contém, não falta nada,
No entanto faltaria tudo se lhe faltasse o sexo ou a umidade do
                 homem certo.

Tudo se contém no sexo, corpos, almas,
Significados, provas, purezas, delicadezas, proclamações, efeitos,
Ordens, canções, higidez, orgulho, o mistério materno, o leite
                  seminal,

As esperanças todas, bens, outorgas, todas as paixões, belezas,
                  amores, os deleites da terra,
Todos os governos, juízes, deuses, o cortejo das pessoas da terra, 
Tudo se contém no sexo como partes de si e justificações de si.

Sem pejo o homem de quem gosto sabe e confessa as delícias do sexo,
Sem pejo a mulher de quem gosto sabe e confessa as delícias do sexo.

Pois eu me afasto das mulheres insensíveis,
Para ficar com a que espera por mim, e com as mulheres de sangue
                   quente que me satisfazem,
Eu vejo que elas me compreendem e não me repudiam,
Vejo que são dignas de mim e eu serei delas o marido vigoroso.

Essas mulheres não são em nada inferiores a mim,
Têm o rosto tisnado pelo brilho dos sóis e pelo sopro dos ventos,
Há na carne delas, antigas e divinas, agilidade, força,
Elas sabem nadar, remar, montar, lutar, atirar, correr, bater
                  recuar, avançar, resistir, defender-se sozinhas,
São supremas por direito próprio - são calmas, límpidas, donas
                  de si mesmas.



**Trad, José Paulo Paes      




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