sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O demônio da analogia - Mallarmé




 Palavras ignotas cantaram em seus lábios restos malditos de uma frase absurda?

Saí de meu apartamento com a sensação peculiar de asa a deslizar sobre as cordas de um instrumento, lenta e leve, que uma voz substituíra pronunciando as palavras em tom descendente: "A Penúltima está morta", de modo que 


                                                                                     A Penúltima
               encerrou o verso e
                                             Está morta


                                                                                                                                                                       se desligou da pausa 
fatídica mais inutilmente no vazio de significação. Dei alguns passos na rua e reconheci no som nulo a corda estendida do instrumento de música, que estava esquecido e que a gloriosa Lembrança certamente acabara de visitar com sua asa ou uma palma e, com o dedo sobre o artifício do mistério, eu sorri e implorei, com intenções intelectuais, uma especulação diferente. A frase retomou, virtual, livre de uma queda anterior de pluma ou ramo, doravante através da voz ouvida, até enfim articular-se só, vivendo com sua personalidade. Ia (não me satisfazendo mais com uma percepção) lendo-a em fim de verso, e, daí, como uma experiência, adaptando-a à minha fala, logo pronunciando-a com um silêncio após "A Penúltima", depois a corda do instrumento, tão estendida em olvido sobre o som nulo, partia-se sem dúvida e eu aduzia como objeto de oração: "Está morta". Eu não parava de tentar uma retornada a pensamentos prediletos, alegando, a fim de me acalmar, que, por certo, a penúltima é o termo do léxico que significa a sílaba anterior à última dos vocábulos, e sua aparição, o resto mal renegado de um labor de linguística pelo qual quotidianamente soluça em pausas a minha nobre faculdade poética: a própria sonoridade e o ar de falsidade assumido pela pressa da fácil afirmação eram uma causa de tormento. Fatigado, resolvi deixar as palavras de triste espécie errarem à vontade. por minha boca e eu seguia murmurando com entonação suscetível de condolência: "A Penúltima está morta, ela está morta, bem morta, a desesperada Penúltima", crendo assim satisfazer a inquietude, e não sem a secreta esperança de sepultá-la na aplificação da salmodia quando, assombro! - por magia facilmente dedutível e vibrátil - senti que tinha minha mão refletida por uma vidraça de loja, lá fazendo o gesto de uma carícia que desce sobre alguma coisa, a própria voz (a primeira, que indubitavelmente havia sido a única).
   Mas onde se instala a indiscutível intervenção do sobrenatural e o começo da angústia, sob a qual agoniza meu espírito há pouco poderoso, foi quando eu vi, erguendo os olhos, na rua dos antiquários instintivamente seguida, que estava diante da loja de um violeiro, vendedor de velhos instrumentos pendurados na parede e, pelo solo, palmas amarelas e, com asas enfiadas na sombra, pássaros antigos. Eu fujo, excêntrico, pessoa condenada a carregar provavelmente o luto inexplicável Penúltima.



*pic: Mallarmé por Manet



Notas do tradutor:

   O "demônio da analogia" (Le Démon de l'analogie) foi publicado em 1º de março de 1874, na Revue du Monde Nouveau, sob o título de "Lá Penultième" (A penúltima). Possivelmente, apenas por ocasião do lançamento dos poemas reunidos, veio o novo e definitivo título.
   Trata-se de um dos textos mais fascinantes do poeta. Já existia uma tradução dele, de Inês Oseki-Dépré, editada há anos pela revista Código, onde a frase-chave, "la Penultième est morte", permanecia no original, sem ser vertida para nossa língua. Motivo: a palavra penultième tem também acento na penúltima sílaba, enquanto, em português, ele recai na antepenúltima. Mas, como esta atual edição nossa é bilíngue, preferimos realizar a transposição inteira.
  Da mesma forma, Anthony Hartley (Mallarmé) procedeu em sua tradução: "The Penultimate is dead" - na lingua inglesa também caindo em pré-proparoxítona, mas em edição também bilíngue.
  Restaria a hipótese de se fazer a versão de "penultième" para "antepenúltima". Talvez, quem sabe? - uma respeitável tentativa de se preservar inteiramente o teor de metalinguagem. Mas, em paralelo, parece-nos uma acrobacia exagerada, ostensiva, em nome do "significante" no original. Há "traições" e "traições".

José Lino Grünewald
Retirado do livro "Poemas", edição da Saraiva de Bolso.
    

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O mundo que te ofereço, amiga - Jorge Rebelo

O mundo que te ofereço, amiga 
tem a beleza de um sonho construído.

Aqui os homens são crentes 
Não em Deus e outras coisas sem sentido
mas em verdades puras e belas
tão belas e tão universais 
que eles aceitam morrer para que elas vivam.

É esta crença, são estas verdades,
 que tenho 
para te ofertar.

Aqui a ternura não nasce 

nas alcovas.
É uma ternura rude, violenta, amarga 
nascida na dureza áspera da luta
 em caminhadas longas 
em dias de espera. 

É esta ternura, rude e amarga,
 que tenho 
para ofertar. 

Aqui não crescem rosas coloridas.
O peso das botas apagou as flores pelos caminhos.
Aqui cresce milho, mandioca 
que o esforço dos homens fez nascer 
na previsão da fome. 

É esta ausência de rosas,
este esforço, esta fome
que tenho
para te ofertar.

Aqui as crianças não envelhecem, 
o seu riso é eterno,
 brincam com o sol, com o vento
com a chuva e os gafanhotos, 
com espingardas verdadeiras,
com pedaços de granadas.

É este riso eterno de criança, este sol, 
estas espingardas verdadeiras 
(com as quais também brinquei), 
que eu tenho 
para te ofertar.

O mundo em que combato 

tem a beleza de um sonho construído.

É este combate, amiga, este sonho, 

que tenho para te ofertar. 



Sugerido por Maria Cristiana Casimiro, de Macau
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