terça-feira, 31 de dezembro de 2019

sábado, 14 de dezembro de 2019

haiga


Domingo





I

Frutas orgânicas
No rótulo:
Geleia abissal
de bicho escasso
II

Taquaras cantam
na igreja a ciranda
da zagaia sem ponta

III

Meninos azucrinam a Buraqueira
repartem uma fruta do lobo
hóstia pagã
fiéis do terreno baldio


Raisa Faetti                                       



quinta-feira, 25 de julho de 2019

UMA HORA E MAIS OUTRA - Carlos Drummond de Andrade

Há uma hora triste
que tu não conheces. 
Não é a da tarde
quando se diria
baixar meio grama
na dura balança;
não é a da noite 
em que já sem luz
a cabeça cobres
com frio lençol
antecipando outro
mais gelado pano;
e também não é a
do nascer do sol
enquanto enfastiado
assiste ao dia
perseverar no câncer,
no pó, no costume,
no mal dividido
trabalho de muitos;
não a da comida
hora mais grotesca
em que dente de ouro
mastiga pedaços
de besta caçada;
nem a da conversa
com indiferentes
ou com burros de óculos,
gelatina humana,
vontades corruptas,
palavras sem fogo,
lixo tão burguês,
lesmas de blackout
fugindo à verdade
como de um incêndio;
não a do cinema
hora vagabunda
onde se compensa,
rosa em tecnicólor,
a falta de amor,
a falta de amor,
A FALTA DE AMOR;
nem essa hora flácida
após o desgaste
de corpo entrançado
em outro, tristeza
de ser exaurido
e peito deserto,
nem a pobre hora
da evacuação:
um pouco de ti
desce pelos canos,
oh! adulterado,
assim decomposto,
tanto te repugna,
recusas a olhá-lo:
é o pior de ti?
Torna-se a matéria
nobre ou vil conforme
se retém ou passa?
Pois hora mais triste
ainda se afigura;
ei-la, a hora pequena
que desprevenido
te colhe e sozinho
na rua ou no catre
em qualquer república;
já não te revoltas
e nem te lamentas,
tampouco procuras
solução benigna
de cristo ou arsênico,
sem nenhum apoio
no chão ou no espaço,
roídos os livros,
cortadas as pontes,
furados os olhos,
a língua enrolada,
os dedos sem tato,
a mente sem ordem,
sem qualquer motivo
de qualquer ação,
tu vives: apenas,
sem saber por quê,
como, para quê,
tu vives: cadáver,
malogro, tu vives,
rotina, tu vives
tu vives, mas triste
duma tal tristeza
tão sem água ou carne,
tão ausente, vago,
que pegar quisera
na mão e dizer-te:
Amigo, não sabes
que existe amanhã?
Então um sorriso 
nascera no fundo
de tua miséria
e te destinara
a melhor sentido.
Exato, amanhã
será outro dia.
Para ele viajas.
 Vamos para ele.
Venceste o desgosto,
calcaste o indivíduo,
já teu passo avança 
em terra dispersa.
Teu passo: outros passos
ao lado do teu.
O pisar de botas,
outros nem calçados,
mas todos pisando,
pés no barro, pés
n'água, na folhagem,

pés que marcham muitos,
alguns se desviam
mas tudo é caminho.
Tantos: grossos, brancos,
negros, rubros pés,
tortos ou lanhados,
fracos, retumbantes
gravam no chão mole
marcas para sempre:
pois a hora mais bela
surge da mais triste.



Van Gogh

quarta-feira, 3 de julho de 2019

O JOGRAL E A PROSTITUTA NEGRA farsa trágica - Décio Pignatari

Onde eras a mulher deitada, depois
dos ofícios da penumbra, agora
és um poema

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.


É à hora carbôni-

ca e o sol em mormaço
entre sonhando e insone.

A legião dos ofendidos demanda

tuas pernas em M,
silenciosa moenda do crepúsculo.

É a hora do rio, o grosso rio que lento flui

flui pelas navalhas das persianas,
rio escuro. Espelhos e ataúdes
em mudo desterro navegam:
Miras-te no esquife e morres no espelho.
Morres. Intermorres.
Inter (ataúde e espelho) morres.

Teu lustre em volutas (polvo

barroco sopesando sete
laranjas podres) e teu leito de chumbo
têm as galas do cortejo:
Tudo passa neste rio menos o rio.

Minérios, flora e cartilagem

acodem com dois moluscos
murchos e cansados, 
para que eu componha, recompondo:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.


(Modelo em repouso. Correm-se as mortalhas das persianas. Gilhotinas

                                                                                                         de luz
lapidam o teu dorso em rosa: tens um punho decepado e um seio bebendo 
                                                                                                    na sombra.
Inicias o ciclo dos cristais e já cintilas.)

Tua al(gema negra)cova assim soletrada em câma-

ra lenta, levantas a fronte e propalas:
"Há uma estátua afogada..." (Em câmara lenta! - disse).
"Existe uma está-
tua afogada e um poeta feliz(ardo
em louros!). Como os lamento e 
como os desconheço!
Choremos por ambos."

Choremos por todos - soluços e entoandum

litúrgico impropério a duas vozes
compomos um simbólico epicéio AAquela
que deitada era um poema e o não é mais.

Suspenso o fôlego, inicias o grande ciclo

subterrâneo de retorno
às grandes amizades sem memória
e já apodreces:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.




                                                              "Erótica", de Di Cavalcante

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

O vizinho ao lado acha estranho - Valéria Duarte

O vizinho do lado acha estranho
eu ouvir Sampaio
eu ouvir Raul
eu ouvir Santa Esmeralda
eu ouvir.
O vizinho do lado
acha estranho
eu correr atrás do gato
fazer polichinelo
às 22:00
o vizinho do lado
não sabe meu nome
nem o nome do meu filho
o vizinho é polícia
autoridade
o vizinho acha estranho
o incenso na cozinha
e quando Samuca, ri
parece rio
o vizinho acha estranho
Don't Let Me Be Misunderstoo
ele não conhece Presley
nem Costello
ele fez implante de cabelo
mas finjo que não vejo
o vizinho do lado pensa 
que às 05:55 é muito cedo
pra esbórnia
pra se levantar
pra ouvir Sampaio
pra ração do gato
pra roupa no varal
pra descer com o lixo
pra pagar as contas
o vizinho não sabe
que saracoteio
ao fazer o jantar
que choro, ao ligar o chuveiro
que rio, ao abrir a geladeira
que controlo, nada
e nem faço questão.
o vizinho do lado não sabe
que abro as janelas
de madrugada
que transmuto
que respiro
que engulo
o clorana
que meu dia
tem 24 horas. e 10 minutos.

Amém.






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