quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

gramofone

já no final da vida 
quando entardecia
minha vó colocava o disco do alcides neves
de 1979
pra junto de meu avô
(emparedado nessas tardes)
lembrar quando ambos tinham força
pra enfrentar suas famílias
o ai-5, a falta de dinheiro
e tantas outras coisas

o disco, paciente, lânguido
entre riscos e faixas quase perdidas
os adormecia antes mesmo da terceira faixa
e era minha mãe que sempre mudava
para o lado b

de certa forma
em algum dialeto inexplicável
aquela força que parecia ter passado
se fazia possível, traduzida

o que me causava espanto eram os indicadores se triscando
trêmulos
a quentura de uma mão na dormência da outra
firmando seu pacto
íntimo

o silêncio daquelas tardes também era
uma história com seu próprio idioma
acendo as lâmpadas
as luzes me lembram
que nem mesmo as poltronas ou o gramofone
(o tempo conferiu todas as bagagens)
ninguém ouve mais alcides neves
e agora sou eu que mudo os canais pra minha mãe

as luzes me lembram
como velas no quarto escuro
que aquela força
como um pacto, como um disco
é hoje ausência química
e o sofá que ocupa o espaço das velhas poltronas
tem mais que o indicador
levemente encostado no meu

há dias - tu sabes- que é o sofá que repousa
sobre meu peito ou sobre minha coluna curva
ou sobre meu ânimo limítrofe

e eu já nem lembro mais
cada porquê de cada tatuagem
que guardei pra fazer um dia
o tempo e seu ritmo
e nada e seus signos
aos olhos de meus avós
voltos postulando uma lembrança
e aos meus
nada
o seco e absoluto
pois há muito medo de ser
o mínimo

adormeço
parece o fim
congelado em nuvens ocres
e já não é possível
distinguir as faixas 
mudar para o lado b
trocar de canal sem ajuda
ou lembrar de quando éramos fortes

ITHALO FURTADO





Ithalo Furtado possui três livros publicados - Uma pedra em cada por enquanto, Dolores )e os remédios pra dormir) e Móveis empoeirados no peito, o mais recente. Seu trabalho sugere novas possibilidades de contar a mesma história e cria um ambiente transmídia que envolve outras formas de arte como música, cinema, fotografia e artes visuais. Há quase um 1 ano desenvolve a intervenção urbana Escuto Hitórias, Escrevo Poemas, onde transforma as histórias das pessoas nas ruas em poesia. 

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