quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Mãe dos Budas, Rainha do céu, mãe do sol; Marici, Deusa do amanhecer

Ao monge Ghosananda


 porca velha na lama

negros pêlos endurecidos

abaixo do pescoço poderoso


patinhas remexendo

corpo agachado escorregando

fundo na lavagem


sua morna imundície,

fuçando tudo,

tetas arrastando


os que a criam

ou a comem

são proscritos


ela levanta o olhinho

da terra pra

me encarar.


Gary Snider

Nalanda, Bihar

Retirado do Livro Re-habitar

Azougue Editorial, 2005




segunda-feira, 21 de setembro de 2020

As treze dicas (lunáticas) de Walter Benjamin a escritores.


 É proibido afixar cartazes


A técnica do escritor em treze teses


I. Quem quiser lançar-se a escrever uma obra de fôlego, instale-se comodamente e conceda a si próprio ao fim de cada dia de trabalho tudo aquilo que não prejudique a sua continuação.

II. Fale do que escreveu, se quiser, mas não leia nada a nínguem enquanto o trabalho estiver em curso. Toda a satisfação que daí possa retirar retardará o seu ritmo. Seguindo esse regime, o desejo crescente de comunicação acabará por ser um estímulo à conclusão.

III. Quanto às condições de trabalho, procure fugir à mediocridade da vida quotidiana. O meio sossego, acompanhado de ruídos pouco estimulantes, é degradante. Já o ruído de fundo de um estudo musical ou da confusão de vozes pode ser tão importante para o trabalho quanto o silêncio tangível da noite. Se este afina o ouvido interior, aqueles se tornam pedra de toque de uma dicção cuja riqueza consegue absorver em si até esses ruídos excêntricos.

IV. Evite servir-se o primeiro instrumento de trabalho que tenha à mão. É útil o apego pedante a determinados tipos de papel, canetas, tintas. Sem luxos, mas com a indispensável abundância desses utensílios.

V. Não deixe que nenhum pensamento passe por você incógnito, e use seu bloco de notas com o mesmo rigor com que os servições oficiais fazem o registro dos estrangeiros.

VI. Torne a sua caneta avessa à inspiração, e ela a atrairá a si com a força de um ímã. Quanto mais refletir antes de passar a escrito uma intuição, tanto mais amadurecida ela se te oferecerá. A fala conquista o pensamento, mas a escrita domina-o.

VII. Nunca deixe de escrever pelo fato de não o ocorrer mais nada. Um dos mandamentos da honra literária é o de interromper a escrita apenas quando há que respeitar uma hora marcada (uma refeição, um encontro) ou quando damos o trabalho por terminado.

VIII. Preencha os momentos de falta de inspiração passando a limpo o que já escreveu. Entretanto, a inspiração despertará.

IX. Nulla dies sine linea - mas semanas sim.

X. Nunca dê uma obra por acabada sem ter mergulhado nela uma vez mais. desde o serão até ao nascer do dia.

XI. Não escreva a conclusão do trabalho no lugar onde habitualmente trabalha. Aí, perderia a coragem de fazê-lo.

XII. Graus de elaboração da obra: pensamento - estilo - escrita. A finalidade de passar a limpo é a de que agora toda a atenção se concentre na caligrafia. O pensamento mata a inspiração, o estilo aprisiona o pensamento, a escrita recompensa o estilo.

XIII. A obra é a máscara mortuária da sua concepção.


Rua de mão única / 

Infância Berlinense, 1900

Editora Autêntica, 2013

p. 27-28


 Jeremy Geddes, Cosmonaut

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

(-)

 (-) o cheiro úmido das coisas que falam em silêncio


o orvalho sorve o concreto das paredes &

mais de quarenta anos

& os sonhos seguem inalcançáveis

a casa não deu,

namorado, emprego, beleza se vai,

as dúvidas sem boca

o gosto agridoce do sexo

as soluções sem conteúdo (das informações reproduzidas)

a cartilagem débil de sentir

& a luta entre ter ou ser dos moluscos no óleo

& o orvalho 

sorvendo o concreto das paredes




(-) reencontro


antigamente era simples

todo mundo se comia depois ia embora

hoje

você aqui na minha cara (neste apartamento)

eu viro mosca

& procuro uma fruta podre onde me esconder




(-) reencontro II


a nossa poesia sucumbiu

ficou

miúda de tesão



(-) os revolucionários também sabem ser caretas


esfaqueamos o rei & nas mãos ficou sangue

traímos 

tudo o que podíamos

até que o mofo cresceu nas cicatrizes

& a vida virou a bunda murcha no cabaret da travesti cansada



(-) memórias do nosso apartamento que resolvi esquecer debaixo da cama porque o banal do cotidiano é o maior continente da alma &depois da casca das feridas há névoa


o gato roçando a geladeira

(& você lavando louça)




(-) a beleza inaudível das coisas é arte


parece uma égua

abaixando-se para a água no bebedouro público

roupas coladas de suor

& os cabelos azucrinados do sol em seus olhos


Guilherme Paiffer Pelodan



                                        Kouřící žena




quinta-feira, 3 de setembro de 2020

domingo, 30 de agosto de 2020

Solidão-liberdade

 

A solidão me assola

Não me demoras, faço dela um prazer na minha solitude que esboça

Teu gosto é de pedra doce e saudade

Bebo vinho dez pras dez da noite

E toco piano por pura vaidade

Conto os dias, conto as horas, nessa solidão cheia de liberdade

Os ponteiros do relógio mentem às quintas

Meus livros estão cheios de tinta

Coisa velha faz borrão na parede

A lua invade a casa solitária e caminha entre as emoções cheia de sede

Bebe de mim o sonho de ontem

A solidão é libertária, nela me desprendo, sanidade, vôo com par de asas em total solitude, cheio de saudade

Agora sou mariposa, Maria que pousa corujeando o azul

Na melancolia, que é menina bonita

Aflita, chora e chove entre as couves do jardim

Seja solidão, seja liberdade, seja par de asas, que nessa alma exala

Seja o relógio, a tinta, a parede, a mariposa, a sede, tudo sou eu, gritando para outros eus.


Poema de Brunno Vianna e Débora Zambi





Débora, que é integrante da Academia de Letras e Arte de São João de Meriti, lançou em 2019 o livro Metamorfose Poética, que pode ser encontrado no site da Editora Metanoia: https://loja.metanoiaeditora.com/deborazambi. Enquanto Brunno Vianna lançou em 2020 Cartas Para a Cidade, livro de contos e crônicas disponível no site do Clube de Autores: https://clubedeautores.com.br/books/search?where=books&what=Cartas+para=a=cidade. O autor também disponibiliza o e-book do livro a todos que entram em contato pelo Instagram @brunnoviannarj. Além de fazer lives sobre Literatura ele mantém o Instagram @espelhodeleituras à disposição de todos os autores que quiserem divulgar seus livros e textos.

Esse poema foi criado em uma delas.



segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Dois poemas de Tassio Ribeiro

 


Raro, seu olhar castanho escuro

Sobre o muro que corta a cidade.

Cinza, cor do tempo, neste lugar

vazio de poesia, flores, árvores.

Tudo mudo, e você aqui observando

O silêncio contínuo

Que insiste em mostrar 

Nada além do tempo

Que passa sem nada

No seu devido lugar


* * * 


Meu pai engraxou os sapatos.

Um hábito antigo que aprendeu

No passado. Pegou seu casaco

E foi para o trabalho, onde era

Um operário. Trabalhava

O dia todo; levava a marmita,

E o café. Minha mãe cuidava

Da casa, e dos meus irmãos.

O seu salário quase não supria

As necessidades da casa.

Mas fazia o que podia, para

Garantir o sustento. E a sua maior

Virtude era a poesia, que fazia

Nas raras horas vagas. Dizia que

Tudo é uma questão de tempo e 

Paciência. E o sorriso já amarelo,

Acalentava a todos, que via sua

Fibra, no corpo franzino, boca de menino, e a coragem de um leão.




Tassio Ribeiro





sábado, 13 de junho de 2020

Pó ética + gif poema

Ir go pra quem não sabe, além de um anagrama do meu nome, é um pleonasmo bilíngue, tipo "short curto", o que não quer dizer absolutamente nada.
Pra quem acha que trocadilho não é matéria pra poema, fique à vontade ou com vontade aí no seu vanguardismo marginal, sua alta filosofia ou seu super intelecto supracadêmico, querendo dizer absolutamente tudo.
Enquanto vocês se importam demais na lucidez da crítica. Eu me exporto mais na ludicidade da vida.
Como quem curte um som, fazendo malabarismos com vibrações acústicas, arte também chamada de música.
A vocês, todas as honrarias e profundidades da eternidade artística.
Eu fico de boa na efemeridade da superfície ávida e vívida.

Prefiro
ferir
rir
ir
i
!
Sempre
a palavra poderá ser quebrada
Pá e lavra
que brada
nas lavras do dia ah dia
Talvez eu encontre
um bruto diamante
ou quem sabe, a brutal:

p o e s i a

{ ir go }





diOli

Na dimensão da quarentena - Crônica fotográfica

















































Aqui os dias passam como se fossem
indiferentes ao resto do mundo
uma dimensão própria

Marcius Barcelos

quinta-feira, 4 de junho de 2020

segunda-feira, 1 de junho de 2020

A hora do pesadelo

pic: Marcius Barcelos


De repente, tudo foi suspenso. A aula parou, o concurso parou, as viagens, a festa, os encontros, a bebida no bar parou. Tudo ficou suspenso no ar. Tudo exigiu stop. Ainda que você ou os governantes não queiram, tudo parou. Só não pararam, é claro, a fome, as contas, o aluguel.
Os berros das crianças aumentaram na verdade, e eu notei que o senhor aparentemente despreocupado que vivia na rua, na frente da loja de departamento, exibia um novo matiz de apatia. Ele ainda me cumprimenta, porque continua muito educado, mas deixa cair o braço rente ao corpo depois de me saudar. Preocupo-me de haver exigido tanto esforço.
Se me sinto aliviada de saber que ele está ainda vivo em algum lugar, ainda que em um espaço impróprio, também noto, triste, que o brilho dos seus olhos se foi. Dá para ver que está aturdido agora. Vazio. Parado. Suspenso no caminho em que passa pouca gente, os mais solidários de máscara. Ele mora na rua, é senhor de idade, tem um colchão, uma garrafa térmica florida — parece nova — e mais alguns apetrechos naquele pedaço de calçada que já, eu não sei por que, já pareceu razoavelmente feliz.
Toda lógica de vida foi suspensa. A precária, a boa, a mediana. Todo plano que o homem consegue colocar em prática, toda sistemática, seja aquela que envolve soltar bolinhas pro alto e pegá-las com destreza no semáforo, seja os planos para a próxima viagem, o próximo estudo, tudo parou.
Parou também o sono para muita gente. Na madrugada, dá para ouvir as estatísticas ganhando formas. Choro de mulher, grito de homem. E a vizinhança até então silenciosa se desvela em contornos angustiantes. Pensei em um dia — em um desses momentos suspensos — que tudo isso parecia um pesadelo. Talvez se eu chacoalhasse a cabeça, beliscasse um braço, a rotina voltaria ao normal.
Não que eu achasse que ela, a rotina, fosse justa. Afinal, o pedaço de chão na frente da loja de departamento já era habitado antes de tudo isso ( e por um bicho, meu Deus, que era um homem). A rotina não era boa para muitas pessoas, mas a gente tinha nossos pulos, nossos encontros, nossos sonhos sonhados com quem também apostava em mudanças.
Tudo parado. Numa conversa de horas no telefone, dessas cada vez mais usuais, descubro que não sou a única a pensar que isso é um sono mau. A moça com problema de saúde disse quase o mesmo: — estou no meio de uma pandemia, caramba, e 'cismei' de ter apendicite. Eu tô num pesadelo. Isso é um pesadelo. Quero acordar!
Bom, chegou a minha hora de dormir. Tenho insônia, mas sei que logo pego no tranco. Preparo-me para uma noite bonita, cheia de encontros sem máscaras, algumas surpresas e dedos em fios dourados. Quando acordo, porém, vem um desejo estranho de pedir por um intercâmbio: prefiro o pesadelo na hora de dormir, e não quando abro os olhos.

Ana Gabriela Oliveira

terça-feira, 26 de maio de 2020

"Se doer coloque gelo"

Se doer coloque gelo
E um filtro no cabelo.
Sente-se ereta
Às 14.00 quando
O sol der as caras
Pela rede da janela
Mostre a barriga
Sintetize
Seja liquido
Passe o sol nas axilas
Deixe a virilha exposta
Não tem vizinho
Tome um taça de vinho
Ouça canções bregas
Ou o tipo que você gosta
O tempo está frio
O dia nunca esteve
Tão azul
Mistura as estações
Faça café
Molho de pimenta no pão
Frite o ovo
Lave o edredom
Use Vick
Use meias desiguais
Cuidado com o açúcar!
Isso marca sua cara
Envelhece; não de forma legal
Passe batom, ou cacau
Nívea creme
E sonrisal.
Desodorante corporal
Pouco sal.
Enfim.
She's going.



Valéria Duarte

quarta-feira, 20 de maio de 2020

O leão íntimo


Quando chegou, ainda era um filhote e podia facilmente ser confundido com um urso de pelúcia. Porém guardávamos certa distância dele e por mais que parecesse inofensivo, ninguém tentava tocá-lo. Admirávamo-lo de longe, dizendo “que leão mais bonitinho”, enquanto ele mordia um pneu velho ou rasgava pedaços de papelão com suas garras pequeninas. Tinha um pelo cinzento e felpudo e seus olhos eram sempre frios e num certo sentido calculistas. Durante os primeiros anos dificilmente o víamos rugir. Às vezes, quando tinha fome ou se sentia enfadado, abria a boca e rosnava de um jeito dócil e ameaçador ao mesmo tempo. Quando comia também rosnava, abraçado a grandes pedaços de carne com uma fúria contida.
Alojamo-lo no pátio interno da casa, onde podíamos sempre vê-lo. Quando não estava dormindo, passeava pelo pátio, forçando as grades e raspando o chão com os dentes. A cada dia
parecia estar mais forte. No segundo mês, seu pelo havia se tornado mais amarelado, já adquirindo a cor que viria a ter por toda a vida. Quando mais o tempo passava, mais a distância entre ele e nós crescia. O que a princípio julgávamos medo deu lugar a uma grande fúria de qualquer um que dele se aproximasse. Com três meses era já um leão maduro e assustador, com um juba imensa e dentes enormes.
Meu pai acreditava que podíamos domesticá-lo mudando sua alimentação e através de uma convivência mais próxima com seres humanos. Mas logo percebemos que havia algo nele que nós não conseguiríamos mudar. Certo dia em que andávamos a passear comeu o cachorro da minha mãe. Quando ela viu a calda do Lulu presa nos dentes do leão, criou um ódio mortal pela besta (como ela passou a chamar o leão) e gritou para meu pai que seria necessário sacrificá-lo imediatamente. Meu pai porém foi absolutamente contra, dizendo que isso seria um crime. Minha mãe argumentou que então o levasse de volta para a África ou o doasse para um zoológico ou que o mandasse para o inferno. Mas meu pai, sem aceitar qualquer argumento razoável, disse que isso estava fora de cogitação, e enfatizou que nunca mais voltaria à África.
Meu pai sabia que dentro de dois ou três anos ele estaria com um porte muito maior e que seria impossível domesticá-lo, com seus instintos de caça já praticamente formados. Qualquer descuido e um de nós poderia ser sua vítima. Seria necessário estar sempre reforçando as grades do pátio interno para que ele não entrasse em casa. Minha mãe sugeriu que instalássemos uma câmera no pátio e o monitorássemos ininterruptamente. Após o incidente com a poodle, meu pai resolveu construir um muro muito mais alto que cercasse o fundo do pátio interno, pois esta parte dava para a rua, e assim nenhum outro bicho poderia entrar lá e o leão ficaria completamente isolado.
O leão suportava a tudo com grande indiferença. Parecia mesmo que não se importava com o que fizessem dele e que nossa existência lhe era completamente indiferente. Quando às vezes nos olhava, era com um profundo desprezo, como se não passássemos de empregados responsáveis por alimentá-lo, o que de fato éramos. Não sei porque nesse instante comecei a pensar no leão como um ser diferente. Comecei a sentir por ele uma espécie de afeição e companheirismo. Senti toda sua dor em permanecer preso durante todo dia naquele minúsculo lugar, um caixa ridícula comparada às planícies das savanas africanas onde podia percorrer livremente, alcançar seu alimento e reinar impávido.
Quando atingiu a idade de 2 anos, o Leão estava completamente desenvolvido. Media quase um metro de altura e sua juba era digna de uma realeza. Os pneus que jogávamos para que se distraísse mordendo se amontoavam num canto do muro, onde às vezes ele ia se deitar. Minha mãe simplesmente ignorava-o completamente, e por causa disso nunca o deixávamos sozinho com ela, pois sabíamos que ele acabaria morrendo de fome. Ele lutava por seu espaço e estava disposto a matar ou morrer por ele, mal nos aproximávamos das grades bem reforçadas do pátio. A impressão que se tinha é que se alguém entrasse ali e saísse com  vida ia ter desejado pelo resto da vida nunca ter entrado.
Apesar de todos os alertas que já haviam sido feitos sobre a atenção que era necessário ter quanto a porta que separava o pátio da casa, certo dia alguém a deixou aberta. Apenas depois pensamos na possibilidade de o próprio leão haver forçado o portão. Assim que o vi passar pela porta, tive tempo para alertar a todos a saírem da casa, porém ele conseguiu me alcançar. Lambeu minha mão e não tive como deixar de acompanhá-lo ao pátio interno.


Felipe Fernandes

terça-feira, 19 de maio de 2020

Dias de Pentecostes

Chegando o dia de Pentecoste,

chega o dia hoje, chega o dia ontem, chega o dia amanhã, nas ruas chega o dia, nas praças chega o dia, no meio do boteco, chega os dias como chegam os dias de menstruação e da morte, chega os dias nas padarias e supermercados, chega o dia fora do mercado, chega o dia na sarjeta dos bolsos, chega o dia depois de alguns nojos, chega o dia na capital do Espírito Santo, chega o dia em jardim América, Cariacica e Vilha Velha, chegando o dia de tantos, chegando o dia de pentecoste

estavam todos reunidos num só lugar.

estavam todos atoas e sincer0s num só espírito, estavam todos trabalhando num mesmo espírito. estavam as mulheres, os estrangeiros, os pobres, os príncipes convidados e os cavalos dos príncipes, estavam as pedras dos montes e a sujeira dos pés dos viajantes, estavam os doentes, palestinos, israelitas, estavam os empresários, os empregados, os desempregados, estavam os forasteiros e os brasileiros, estavam os negros, os pobres, os brancos, os mestiços, os latinos e os americanos, estavam as crianças e as brincadeiras de crianças, estavam os ladrões gente de bem gente ladrões bem, estavam os crentes e os curiosos, os interesseiros e os famigerados políticos, estavam os ausentes e os preenchidos, as anônimos e os estranhos, estavam os discípulos de Jesus e as testemunhas de Jeová, estavam todos num só lugar

De repente veio do céu um som,

De repente veio do céu uma bomba, veio do céu uma guerra, veio do céu uma união e uma separação, veio do céu as aves migratórias, veio do céu uma canção divina, veio do céu um anjo em forma de demônio, veio do céu a expulsão, veio do céu um filho, veio do céu o sentimento do trovão, veio do céu uma agitação, veio do céu o apocalypse e a voz de Deus criando o mundo, veio do céu uma banda de instrumentos tocando funk, ópera e heavy metal, outros estilos, veio do céu uma afinação, veio do céu um som

como de um vento muito forte,


como de um sopro de vida, como de uma respiração boca-boca, comode um beijo virgem de Cristo, como de uma brisa forte para empinar pipa, como de um ciclone a quebrar as praias e as cidades, como uma mãe em maremoto, como um ventilador de parede ao extremo, como de vidas voadas, como de uma tempestade de verão, como de um secador de cabelos, como de uma balão estourando, como de um furação, como de um vento muito forte

e encheu toda a casa na qual estavam assentados.

no qual estavam descansados, no qual estavam dormindo, no qual estavam comodismo, no qual estavam em posição de agachados, no qual estavam intactos, no qual estavam inoperantes, no qual estavam budistas e islâmitando, no qual estavam prostados como pedras, no qual estavam abandonados sobre si mesmo, no qual estavam imóveis, no qual estavam estavam prespreocupados, e encheu toda a casa no qual estavam assentados

E viram o que parecia línguas de fogo,

o que parecia línguas de enxofre, o que parecia a boca de fogão acesa, o que parecia o idioma dos oprimidos e dos oprimentes, o que parecia setas queimando no ar, o que pareciam bambolês azuis e amarelos, o que parecia a íngua que dá nos humanos, o que parecia um pedaço de pano rasgando-se, o que parecia a visão dos varões nas assembléias de Deus, o que parecia o surrealismo de Dali e o inferno de Dante, o que parecia uma obra barroca derretendo-se, o que parecia a dominação do vermelho, e viram o que parecia línguas de fogo

que se separaram e pousaram sobre cada um deles.

Os pentecostes El Greco
e cada um deles. e pousaram como pássaros que encontram refugio, e pousaram como quem pula de para-quedas, e pousaram como quem não tem casa e descansa nas favelas, e pousaram como uma folha quando cai da arvore, e pousaram sobre cada cabeça abaixada e levantada, e pousaram sobre as costas dos que já não se levantam, e pousaram sobre os que não eram concursados, e pousaram sobre os que eram santos e pecadores, e pousaram sobre os viúvos e recém-casados e pousaram sobre os solteiros e os despreparados, e pousaram sobre os menos atraentes, gordos, estranhos, fora dos padrões de sansão, e pousaram sobre os que eram diversos e vários, sobre os que estavam distante de Deus e sobre os que deixaram de assistir o programa do Silas Malafaia, pousaram sobre os gringos, pousaram sobre cada um do gueto, da periferia, do medo, pousaram 

Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito os capacitava.

 And they were all filled with the Holy Ghost, and began to speak with other tongues, as the Spirit gave them utterance. 

Y fueron todos llenos del Espíritu Santo, y comenzaron a hablar en otras lenguas, como el Espíritu Santo les daba que hablasen.

(Atos 2: 1-4)

Clélio Souza



segunda-feira, 18 de maio de 2020

Sou um com o mundo

Sou um com o mundo,
Isto é, também jazo
em leitos ignorantes
tal e qual os pensamentos
ao meu redor
Jazem de ignorância.

Quero morrer na noite
Quando tudo virar pizza,
Ou picanha na brasa.
Essa eu quero mal passada,
sempre.

E agora o aguardado momento:
De ver o pau cair as folhas,
tudo em questão de segundos.
amargo sorriso de língua

Pode ser C.P.I
Churrasqueira acesa 
Pipoca no microondas
Na manteiga tudo desliza
Fácil até demais.

Não me importam 
Esses engravatados
Desde que me sirvam, tudo bem.

Eduardo Guimarães


                                                      Foto: Vinicius Tobias

sexta-feira, 27 de março de 2020

Nada como o tempo - para matar

NADA COMO O TEMPO
para matar

como o tempo

( e não há nada
                   para saciar )

de cá a rotina
      o dia a dia
      para passar

Prezado prazo,
venho através deste
                                   comunicar:

ESTOU PRESO!
                            em cada medo
                            em cada dado
                            em cada dedo

Desatenciosamente,

_________
               Igor

(sigo como cínico ouvinte
o ritmo algorítmico
dos anos 2020)

Caro contrato,
estou inconsciente
mas quero continuar

exposto como uma fratura
 :

"É NECESSÁRIO
ASSASSINAR AS
ASSINATURAS ! ! !"

matar o tempo, sim
sem deixar impressões

                     digitais
                     manuais
                     editoriais

Quedar a vida inteira
caído como cachoeira

imitar o mito do vento
trespassar transparente

COMO O TEMPO
nada para passar

sigo o silêncio com o olhar:
uma bactéria florida

o sol e sua solidão espacial
sua melancolia de nunca ver o dia

entediado em sua escravidão
               gravitacional

rotações translações como
prótons                    nêutrons

sonhando fugir de seu giro
N     U      C     L    E     A     R

como eu . . . nesse tédio trágico
t e m p o f á g i c o

encaro o cotidiano
pleno de planos

de explodir o mundo
de construir o futuro

de tornar toda folha vazia
um           lugar         seguro

Mas isso tudo pode esperar . . .
por ora:

               preparar
               apontar
               e atirar

Afinal, nada como o tempo para

(se) matar.

( ir go - Igor Alves)

domingo, 1 de março de 2020

Ijaci Alagada

Ijaci é muito pequena
E tem muitos poucos símbolos cívicos
Numerá-los? Pra que?
Precisaria de apenas três versos
Talvez menos
Mas tem muitos pontos cardeais
Nos quais os corações - dos religiosos e dos maconheiros
Podem se ancorar, e alçar vôos de sonhos
É notável sua potência mineral
E apesar da represa afogando
      o rio sobre o qual repousava a lua
Pedras grandiosas guardam sua soberania
A pedra do bugio
Que privilegiadamente vejo pela janela
E a gruta de Santo Antônio
Alagada até a metade
Na qual a permanência do santo fujão
Garantiu a exigência de uma passarela
Essas pedras, uma por seu formato de obelismo
E outra por guardar a sagrada imagem
Mantém seu corpo mineral, embora esquartejado
A erguer-se em direção ao céu noturno
À lua cheia
Através da água agora má, agora parada
Um dia choverá o bastante, e Jaci
Recuperará seu rio da hidra-elétrica
Disso eu tenho a certeza
                          -nesse dia todos estarão casados



Vinicius Tobias
1/03/2020 - aniversário de Ijaci







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