Quando chegou, ainda era um filhote e podia facilmente ser confundido com um urso de pelúcia. Porém guardávamos certa distância dele e por mais que parecesse inofensivo, ninguém tentava tocá-lo. Admirávamo-lo de longe, dizendo “que leão mais bonitinho”, enquanto ele mordia um pneu velho ou rasgava pedaços de papelão com suas garras pequeninas. Tinha um pelo cinzento e felpudo e seus olhos eram sempre frios e num certo sentido calculistas. Durante os primeiros anos dificilmente o víamos rugir. Às vezes, quando tinha fome ou se sentia enfadado, abria a boca e rosnava de um jeito dócil e ameaçador ao mesmo tempo. Quando comia também rosnava, abraçado a grandes pedaços de carne com uma fúria contida.
Alojamo-lo no pátio interno da casa, onde podíamos sempre vê-lo. Quando não estava dormindo, passeava pelo pátio, forçando as grades e raspando o chão com os dentes. A cada dia
parecia estar mais forte. No segundo mês, seu pelo havia se tornado mais amarelado, já adquirindo a cor que viria a ter por toda a vida. Quando mais o tempo passava, mais a distância entre ele e nós crescia. O que a princípio julgávamos medo deu lugar a uma grande fúria de qualquer um que dele se aproximasse. Com três meses era já um leão maduro e assustador, com um juba imensa e dentes enormes.
Meu pai acreditava que podíamos domesticá-lo mudando sua alimentação e através de uma convivência mais próxima com seres humanos. Mas logo percebemos que havia algo nele que nós não conseguiríamos mudar. Certo dia em que andávamos a passear comeu o cachorro da minha mãe. Quando ela viu a calda do Lulu presa nos dentes do leão, criou um ódio mortal pela besta (como ela passou a chamar o leão) e gritou para meu pai que seria necessário sacrificá-lo imediatamente. Meu pai porém foi absolutamente contra, dizendo que isso seria um crime. Minha mãe argumentou que então o levasse de volta para a África ou o doasse para um zoológico ou que o mandasse para o inferno. Mas meu pai, sem aceitar qualquer argumento razoável, disse que isso estava fora de cogitação, e enfatizou que nunca mais voltaria à África.
Meu pai sabia que dentro de dois ou três anos ele estaria com um porte muito maior e que seria impossível domesticá-lo, com seus instintos de caça já praticamente formados. Qualquer descuido e um de nós poderia ser sua vítima. Seria necessário estar sempre reforçando as grades do pátio interno para que ele não entrasse em casa. Minha mãe sugeriu que instalássemos uma câmera no pátio e o monitorássemos ininterruptamente. Após o incidente com a poodle, meu pai resolveu construir um muro muito mais alto que cercasse o fundo do pátio interno, pois esta parte dava para a rua, e assim nenhum outro bicho poderia entrar lá e o leão ficaria completamente isolado.
O leão suportava a tudo com grande indiferença. Parecia mesmo que não se importava com o que fizessem dele e que nossa existência lhe era completamente indiferente. Quando às vezes nos olhava, era com um profundo desprezo, como se não passássemos de empregados responsáveis por alimentá-lo, o que de fato éramos. Não sei porque nesse instante comecei a pensar no leão como um ser diferente. Comecei a sentir por ele uma espécie de afeição e companheirismo. Senti toda sua dor em permanecer preso durante todo dia naquele minúsculo lugar, um caixa ridícula comparada às planícies das savanas africanas onde podia percorrer livremente, alcançar seu alimento e reinar impávido.
Quando atingiu a idade de 2 anos, o Leão estava completamente desenvolvido. Media quase um metro de altura e sua juba era digna de uma realeza. Os pneus que jogávamos para que se distraísse mordendo se amontoavam num canto do muro, onde às vezes ele ia se deitar. Minha mãe simplesmente ignorava-o completamente, e por causa disso nunca o deixávamos sozinho com ela, pois sabíamos que ele acabaria morrendo de fome. Ele lutava por seu espaço e estava disposto a matar ou morrer por ele, mal nos aproximávamos das grades bem reforçadas do pátio. A impressão que se tinha é que se alguém entrasse ali e saísse com vida ia ter desejado pelo resto da vida nunca ter entrado.
Apesar de todos os alertas que já haviam sido feitos sobre a atenção que era necessário ter quanto a porta que separava o pátio da casa, certo dia alguém a deixou aberta. Apenas depois pensamos na possibilidade de o próprio leão haver forçado o portão. Assim que o vi passar pela porta, tive tempo para alertar a todos a saírem da casa, porém ele conseguiu me alcançar. Lambeu minha mão e não tive como deixar de acompanhá-lo ao pátio interno.
Felipe Fernandes
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