Estamos vivos, todos nós. Constituídos, risomados e fluidificados na fauna e na flora - também nas condições físicas que permitem que a vida continue a pulsar por aí, nos desejos humanos, estamos a crescer, a multiplicar, a matar, a escarnear: sempre em direção à luz, ao verde ou ao sangue. Assim é a poesia de Raisa Faetti repleta de luz, exoesqueletos, verde e sangue. Cheio de vida. Raisa conclama o "direito orgânico", como diz em seu poema "Gerra dos Torrões" abaixo. Propõe uma tradução entre as lógicas físicas e químicas da fauna e flora em uma lógica semântica da palavra-enzima. O resultado é uma espécie de concretismo orgânico, onde fungos, mamíferos, insetos, crianças, velhos, amantes, ambientes e enfim todos aqueles seres cuja relação é constituída por instinto e pó contribuem com uma indexação quase cientifica de seus traços semióticos. O clima de sua poesia responde exatamente ao bioma que habita a poeta: não o colorido, quente e super saturado das florestas tropicais, mas o árido, profundo, misterioso e super-específico Cerrado. Como uma bióloga do sentido guarda com astúcia suas espécimes em versos, preservando o que ainda há de expressão mental do Cerrado - o bioma mais ameaçado, mais misterioso e mais antigo do continente. Esquisito, super-específico, revelador, pequeno e torto e com raízes super-profundas a poesia de Raisa guarda um manancial sob a aridez propondo ainda o ver e o sentir do ambiente, da poesia, da fauna e da flora: observa os animaizinhos enquanto desaparecem.
A pedra, de Raisa Faetti |
GUERRA DOS TORRÕES
Quando a terra quente
deste brejo urbano
ficou exposta e secou
as crianças correram
para reclamar ao dono
seu direito orgânico
da exploração da área
Declarou-se a Guerra dos Torrões
punhados de frutinhas
roubadas no mato
deixavam os dias
mais adstringentes
e sustentavam as horas
dos soldados em batalha
Prenderam os insetos
em caixinhas de fósforo
para futuras pesquisas
sobre seu potencial bélico
enquanto os últimos girinos
capturados com armas de cozinha
viravam munição
O pelotão tomou a casa abandonada
À noite ouvia-se o tropel
tudo se apertava:
coração, pernas e calor
Até os cães latirem
para alguma coruja inocente
que logo era bombardeada
Ao fim de treze anos
a rua inteira e as fachadas
todas destruídas
houve uma reunião com
a alta cúpula dos soldados
e a cansada diligência dos pais:
Era chegada a hora do banho
***
PALEOZOICO
Há um embargo antigo
no banho de lavadeira
que confunde o horizonte
e todo animal se arrepia
***
CORTEJO
O cortejo passando
lixivia estruturas
pinga resistência
O cortejo confunde
intermitências
resiste pela metade
***
CAÇADA
de cima do jirau
ecos de furou panela!
e o bicho-estanque passa
assim como um peixe
pula entre árvores
uma leve gastura
***
PANTANAL
Na fronteira mais ao
teiús descorados
e o restante dos bos
metabolizam
paus pretos virados no chaco
cachimbam a mesma torção
***
MARCENARIA
Pausa na leitura
eu, esticada no sofá
penso em você:
como deve ser bonita a execução
do ofício santo da marcenaria
Fico desejando ser
fina e reta
a tábua que você alisa
calcula e esquarteja
Nessa hora da luz do dia
tomar vinho na taça do freguês
transformar em peça de deboche
a acabar com o cristo marceneiro burguês
Olho para o livro novamente
e para a ponta dos dedos:
você vai adorar
o meu esmalte preto
***
ISLERO
"No perder de vista al toro"
Mesmo que seja rombo
o animal que pasteja
é preciso sangrá-lo
com o cheiro antigo
da morada limpa
Assim como numa igreja
o que mancha a roupa
do fiel imprudente
é a parede recém caiada
e não o santo empoleirado
***
CENA DE TERROR I
Pegaram os três
mas um estava em ovo ainda
este foi só trincar
o restante tentou se defender
com os ...
_É difícil saber.
Mas depois acharam
as orelhas e um rabo
no outro lado da linha.