terça-feira, 6 de julho de 2021

Interlúdio


    Que trabalho de campo é uma experiência intensa de aprendizado, a gente bem sabe. Não vejo cabimento em supor que se vai pro meio do mato e se volta intacta, pois sempre aumentamos a bagagem – e não falo só da carroceria cheia de potes e poeira. Às vezes o que mais toma lugar na memória nem é do roteiro do trabalho de campo em si, mas dos encontros que o acaso realiza e da experiência humana singular que daí resulta.

     Estávamos nós no sertão mineiro, pelas margens do rio Pandeiros, lá onde ele se junta com uma lagoa perene que preserva ainda em seus cílios ralos uns buritis antigos. Antiga também uma barragem hidrelétrica que ali existe, pequena e desativada; tão antiga quanto muitas das pessoas mais velhas dessa vila rural onde nos alojávamos, vila xará do rio. Sendo nossa terceira campanha coletando formigas em uma pesquisa ecológica no entorno desses corpos d’água, foi dessa vez que iniciamos entrevistas com parte do pessoal dos arredores. Por isso a expectativa boa de finalmente sermos algo mais do que um grupo vindo de longe, geralmente sujo de barro e suor, que passa para-lá-e-para-cá, caminhonete branca erguendo poeira. Ou gente que só desce rápido no mercado, perneiras ainda vestindo as canelas, porque o estoque de água comprado em Montes Claros não segurou o calor dos dias ou porque o fim do dia pedia mesmo era uma cerveja geladinha. Coisa de campo, a gente bem sabe.

            Como costume, estávamos naqueles dias trabalhando na nossa maneira de fazer mais com menos: duas duplas em áreas distintas, fosse pela manhã em experimentos de coleta de formigas e dados ecológicos, fosse à tarde entrevistando quem se dispunha.  Já umas dez da manhã, o experimento já pelos meios, minha dupla e eu ali de olhos no chão: em folhas, miçangas de madeira recheadinhas com uma massa atrativa, que se passam por sementes naturais e bem dão conta de convencer as formigas que por esse tipo de recurso se interessam. Atentas, a gente ia anotando as interações dos bichos, coletando quem comia uns bocados ali mesmo e quem carregava nossas sementes artificiais pra longe da folha (sempre o mais divertido, um jogo de pega-pega com pinça). Tudo conforme o roteiro, à sombra razoável de árvores baixas à margem da lagoa, sombra mais que boa sendo o sol forte de novembro. Não chovia, mas algum vento vez ou outra punha a dançar o buriti grande que guarda a trilha que se inicia bem na saída da lagoa, pertinho do nosso primeiro ponto de coleta.

     Num repente, sai um cavaleiro da lagoa. Lembro bem do bigode cerradinho, do chapéu sertanejo e da bolsa de couro a tiracolo. De feição bem séria, disse – “dia! ”. “Bom dia! ”, a gente gritou de volta em simpatia, já acompanhando com os olhos outro homem mais jovem, que o seguia montado a cavalo. Uns barulhos de pisoteio de casco na água rasa, sons metalizados de sinos que mais parecem agogôs e, pronto, tempo nem deu de retornar a atenção para as formiguinhas na folha. Um boi chifrudo é quem agora irrompe da água da lagoa! Nem deu tempo do susto, já sai outro boi da beira detrás do buriti. E mais um e outro, em atropelos de levantar água, mugir e virar as caras grandes pro nosso lado.

            A vinte metros da água e a uns cinco da trilha, a gente até tentava seguir com o experimento em seu tempo marcado, já que a fila de bois parecia ir tomando seu rumo estradinha afora, margeando a cerca. Os cavaleiros na frente puxando a boiada, “êêê, boi! ”. Nisso o primeiro homem sai da trilha, estaciona seu cavalo ao nosso lado e, do alto do bicho, bem sério nos pergunta que fazíamos nós ajoelhadas mexendo ali com aqueles trem. Maravilha, pensei, surgia ali um momento de diálogo. Animada eu disse da importância das formigas em espalhar sementes e fazer crescer as matas, e que a gente usava as miçangas com massinha como se sementes fossem e etecetera. Sério ele continuou, de novo analisou as continhas de madeira. Não sendo formiga, a ele não convenceram. Pelas rédeas botando o cavalo de novo no rumo da trilha do buriti, ventou a despedida sobre nossas cabeças: “o povo inventa cada coisa!”.



Cynthia Oliveira




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