Que trabalho de campo é uma experiência intensa de
aprendizado, a gente bem sabe. Não vejo cabimento em supor que se vai pro meio
do mato e se volta intacta, pois sempre aumentamos a bagagem – e não falo só da
carroceria cheia de potes e poeira. Às vezes o que mais toma lugar na memória
nem é do roteiro do trabalho de campo em si, mas dos encontros que o acaso
realiza e da experiência humana singular que daí resulta.
Estávamos
nós no sertão mineiro, pelas margens do rio Pandeiros, lá onde ele se junta com
uma lagoa perene que preserva ainda em seus cílios ralos uns buritis antigos.
Antiga também uma barragem hidrelétrica que ali existe, pequena e desativada;
tão antiga quanto muitas das pessoas mais velhas dessa vila rural onde nos
alojávamos, vila xará do rio. Sendo nossa terceira campanha coletando formigas
em uma pesquisa ecológica no entorno desses corpos d’água, foi dessa vez que
iniciamos entrevistas com parte do pessoal dos arredores. Por isso a
expectativa boa de finalmente sermos algo mais do que um grupo vindo de longe,
geralmente sujo de barro e suor, que passa para-lá-e-para-cá, caminhonete
branca erguendo poeira. Ou gente que só desce rápido no mercado, perneiras
ainda vestindo as canelas, porque o estoque de água comprado em Montes Claros
não segurou o calor dos dias ou porque o fim do dia pedia mesmo era uma cerveja
geladinha. Coisa de campo, a gente bem sabe.
Como
costume, estávamos naqueles dias trabalhando na nossa maneira de fazer mais com
menos: duas duplas em áreas distintas, fosse pela manhã em experimentos de
coleta de formigas e dados ecológicos, fosse à tarde entrevistando quem se
dispunha. Já umas dez da manhã, o
experimento já pelos meios, minha dupla e eu ali de olhos no chão: em folhas,
miçangas de madeira recheadinhas com uma massa atrativa, que se passam por
sementes naturais e bem dão conta de convencer as formigas que por esse tipo de
recurso se interessam. Atentas, a gente ia anotando as interações dos bichos,
coletando quem comia uns bocados ali mesmo e quem carregava nossas sementes
artificiais pra longe da folha (sempre o mais divertido, um jogo de pega-pega
com pinça). Tudo conforme o roteiro, à sombra razoável de árvores baixas à
margem da lagoa, sombra mais que boa sendo o sol forte de novembro. Não chovia,
mas algum vento vez ou outra punha a dançar o buriti grande que guarda a trilha
que se inicia bem na saída da lagoa, pertinho do nosso primeiro ponto de
coleta.
Num
repente, sai um cavaleiro da lagoa. Lembro bem do bigode cerradinho, do chapéu
sertanejo e da bolsa de couro a tiracolo. De feição bem séria, disse – “dia! ”.
“Bom dia! ”, a gente gritou de volta em simpatia, já acompanhando com os olhos
outro homem mais jovem, que o seguia montado a cavalo. Uns barulhos de pisoteio
de casco na água rasa, sons metalizados de sinos que mais parecem agogôs e,
pronto, tempo nem deu de retornar a atenção para as formiguinhas na folha. Um
boi chifrudo é quem agora irrompe da água da lagoa! Nem deu tempo do susto, já
sai outro boi da beira detrás do buriti. E mais um e outro, em atropelos de
levantar água, mugir e virar as caras grandes pro nosso lado.
A
vinte metros da água e a uns cinco da trilha, a gente até tentava seguir com o
experimento em seu tempo marcado, já que a fila de bois parecia ir tomando seu
rumo estradinha afora, margeando a cerca. Os cavaleiros na frente puxando a
boiada, “êêê, boi! ”. Nisso o primeiro homem sai da trilha, estaciona seu
cavalo ao nosso lado e, do alto do bicho, bem sério nos pergunta que fazíamos
nós ajoelhadas mexendo ali com aqueles trem. Maravilha, pensei, surgia ali um
momento de diálogo. Animada eu disse da importância das formigas em espalhar
sementes e fazer crescer as matas, e que a gente usava as miçangas com massinha
como se sementes fossem e etecetera. Sério ele continuou, de novo analisou as
continhas de madeira. Não sendo formiga, a ele não convenceram. Pelas rédeas
botando o cavalo de novo no rumo da trilha do buriti, ventou a despedida sobre
nossas cabeças: “o povo inventa cada coisa!”.
Cynthia Oliveira
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