segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Han Shan: Cronicas do mestre dos vagabundos do dharma sem fazer nada na Montanha Gelada


As Montanhas Tientai são meu lar
Entre trilhas cobertas de nevoeiros em meio a nuvens
Isso mantém os hóspedes longe
Penhascos de mil metros fazem se esconder fácil
Acima de uma quina rochosa entre dez mil córregos
Com um manto de cânhamo e bastão de caruru eu contorno os picos
Enxergado além da impermanência e ilusão
As alegrias de vagar livremente são maravilhosas



              ***



Minha verdadeira morada está na Montanha Fria
Empoleirado nos penhascos além do alcance dos problemas
As imagens não deixam impressões quando se vão
Eu vagueio por todo o universo daqui
Luzes e sombras dançam em minha mente
Nem só um dharma aparece diante de mim
Desde que achei a pérola mágica
Posso ir a qualquer lugar, qualquer lugar é perfeito



             ***


Ontem subi até o cume
E fitei para baixo de um penhasco profundo
Uma árvore se tombava na quina
O vento desnudou seus dois membros
A chuva arrancou suas folhas
O sol a secou como o pó
Ai de mim que uma coisa verdejava tanto
É agora uma pilha de cinzas


             ***


Toda minha vida preguiçoso demais para trabalhar
Favorecendo o leve sobre o pesado
Outros tomam para si uma carreira
Eu seguro um sutra
Um rolo de papel com nada dentro
Eu o abro onde quer que esteja
Para toda doença tem uma cura
Cura com qualquer coisa funciona
Uma vez que você não tenha um plano
Onde quer que vá está alerta


             ***


Desde um elevado pico da montanha 
A vista se estende para sempre 
Sento aqui desconhecido
A lua solitária ilumina a Montanha Fria
Na primavera não há lua
A lua está no céu
Canto essa cantiga única
Uma canção na qual não há Zen



*Han Shan (Montanha Gelada) é um poeta mítico do zen que viveu entre os séculos VII ou VIII
**Tradução de Marcos Beltrão, download




*A pergunta que Han Shan faz é a seguinte: Quem é o homem que subirá a montanha gelada e virá ter comigo?



    "'Alvah, o seu problema é que você não pratica seu zazen noturno o bastante, principalmente quando faz frio lá fora, o que é muito melhor, além disso você deveria se casar e ter filhos mestiços, manuscritos, cobertores feitos em casa e leite materno sobre o seu tatame alegre e esfarrapado como este aqui. Arrume uma cabana para morar no mato não muito longe da cidade, gaste pouco para viver, enlouqueça em um bar de vez em quando, escreva e caminhe pelas montanhas e aprenda a serrar tábuas e converse com velhinhas, seu grande tolo, carregue muita madeira para elas, bata palmas em altares, consiga favores sobrenaturais, faça aulas de arranjos florais e plante crisântemos ao lado da porta, e se case pelamordedeus, arrume uma moça humana gentil, inteligente e sensível que não liga para os martinis de toda a noite nem para todo aquele maquinário branco na cozinha'
     'Ah', diz Alvah, sentando-se todo contente; 'O que mais?'
   'Pense nas andorinhas do celeiro e nos falcões da noite enchendo os campos. Sabe, Ray, desde ontem traduzi mais uma estrofe de Han Shan, ouça: "A montanha gelada é uma casa, sem pilastras nem paredes, as seis portas à esquerda e à direita estão abertas, o corredor é o céu azul, os quartos estão vagos e vazios, a parede leste bate na oeste, no meio não tem nada'. Pessoas que tomam coisas emprestadas não me incomodam, no frio armo uma fogueirinha, quando tenho fome cozinho algumas verduras, não tenho o que fazer com o cúlaque com seu celeiro e seu pasto extenso... ele só constrói uma prisão para si mesmo; uma vez lá dentro, não consegue mais sair, pense bem, isso pode acontecer com você."

      *Trecho de Os Vagabundos iluminados onde Jack Kerouac reproduz, em meio à bebedeira, um discurso  de Gary Snyder (no livro Jalphy Ryder), o beatnick zen anarquista e tradutor do Han Shan.



                      *pic: Gary Snyder no Japão, 1963, em foto tirada por Allen ginsberg


  

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Larva Lança Livro - Metal Físico




A série de publicações poéticas Intervenção Humana, de Vinicius Tobias, chega ao seu 4º Capítulo. Após o Eu poético passar fome de moderação no Primeiro Capítulo, tentar minimamente organizar-se como um país vencido no Segundo Capítulo, projetar para o futuro sua própria humanidade no Terceiro Capítulo, agora sem nenhuma veste ele se pergunta sobre o sentido da existência.
Ao fazer esse debate a própria linguagem que descreve a realidade, aliás, a própria realidade é posta em cheque. As coisas realmente existem?
Traçados esses planos qual é o céntimo de realidade que temos acesso pela nossa vida cotidiana, cheias de distinções e de sérios problemas que não têm sustentação perante qualquer entendimento? Dar nomes e criar conceitos é um passo para frente ou para trás na busca pela sabedoria?
É possivel imaginar as coisas sem nossos sentidos para percebê-las, e se nossos sentidos fossem outros, as coisas também seriam outras?
O debate sobre esse acesso é feito, de forma processual, no livro Metal Físico a partir de quadras banais, leis da física e fotos anti-linguísticas.
Segue degustação:





* O coffee break será oferecido pela Padaria Pão Gostoso.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

"Panifesto" da Poesia Urbana contra o Eufemismo e a Cátedra - Lucas F.L

Que fique bem claro seu-dotô
A Poesia Urbana é uma praga
que se alastra como as favelas
cheira à água de despejo
perturba como insônia
tem a força do tráfico
e o atrevimento dos pivetes do Brás

Não adianta fechar seus vidros elétricos
e viajar para a Glória, a baía, a linha do horizonte
pois a fome das ruas arranhará sua lataria importada
incendiará sua vitrine de magazines 

Ela anda como os desprovidos
revela sem eufemismo'
as mazelas humanas
a cidade oculta
a tristeza dos chineses
a loucura reprimida dos Garis

Se cuida, turista deslumbrado
um arrastão de versos miseráveis
invadirá sua praia
sequestrará seus fetiches literários,
seus continhos fantásticos,
e estraçalhará sua poesia plástica
num tiroteio hediondo

Um conselho?
se não quiser perder a pose
corra para bem longe
esconda-se atrás dos muros da academia
dope seus jovens operários com boas doses de informação
títulos
e reproduza robôs mais fortes
o suficiente para dar conta do que você não deu

Aqui fora
as crianças continuam praticando papai e mamãe
jovens morrem com a cabeça vazia no volante
existe uma massa de carne e osso dopada de altas doses-
institucionais
escolas apodrecem
falta teatro, cinema e orgia para o povo

E você catedrático, 
só preocupado com a chegada de um livro
importado
e o congresso no planeta Hermético


*pic: Lucas F.L


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Poesia Poligrota - Autor Desconhecido

É verdade matemática
que ninguém pódi negá,
que essa história de gramática
só serve pra atrapaiá.
Inda vem língua estrangêra
ajudá a cumpricá
Mió falá o brasileiro
que todos sabe falá.

     Na Ingraterra ouví dizê
     que um pé de sapato é xu.
     Desde logo já se vê,
     dois pé deve sê xuxu.
     Xuxu pra nóis é um ligume
     que cresce sorto no mato.
     Os ingrêis lá que se arrume,
     mas nóis num come sapato.

Na Argentina, veja ocêis,
um saco é um paletó.
Se o gringo toma chuva
tem que pô saco no sór.
E se acaso ele encóie,
a muié diz o pió:
"Teu saco ficô piqueno
vê se arranja ôtro maió"...

    Na América corpo é bódi
    Veja que bódi foi dá.
    Conheci uma americana
    doida pro bódi emprestá.
    Fiquei meio atrapaiado
    e disse pra me escapá:
    Ói, moça, eu não sou cabra,
    chega seu bódi pra lá!

Na Alemanha tudo é bundes.
Bundesliga, bundesbão.
Muita bundes só confundi
disnorteia o coração.
Alemão ó, menos bundes
que só nos trais confusão.
pro que di trais desses bundes
sempre vem um salsichão.

    No chile cueca é dança
    de balançá e rodá.
    Lá se dança e baila cueca
    inté a noite acabá.
    Mas se um dia um chileno
    vié pro Brasi dançá,
    que tente mostrá a cueca
    pra vê onde vai pará.

Eu conheci um francêis 
que me deu uma gravata azu.
Preguntei, onde se bota?
E ele me disse no cu.
Eu sou óme confirmado
mais respeito entendeu?
Seu franceis mar educado
bota a gravata no seu!

    E vindo de Portugá
    tem um dizê que num cola
    lá os putos são as crianças
    imagine isso na escola
    a fessora vim dize:
    vou da aula pra esses putos
    oh! tiro meus fio na hora,
    num dimito esses insurtos

E o Japão que aqui chegô
Sim sinhoro arigatô
com o kimono e o co shoyo
vapt a nossa lingua robo
nois fazia era serenata
hoje é karaokê
aquelas briga de tapa
Elis diz que é Karatê

    E pra vosmiceis eu afirmo,
    tem que se tê pusição.
    Ô nóis fala a nossa língua,
    ô num fala nada não.
    Pois num pode um povo
    fazê papér de idiota,
    dizendo tudo que é novo
    só pra falá poligrota

Na Itália els diz até,
eu não sei pro que razão,
que como mantêga é burro,
se passa burro no pão.
Ara agora chega,
certo é a vida no sertão,
onde mantêga é mantêga,
burro é burro e pão é pão (e tenho dito)




*Extraído do cordel "Cordéis do Canfundó" de Cascão.
** Parece que vender poesias na rua não é novidade não né...

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

De corpo e software - Igor Alves

não que eu me importe 
com a altura da sua 
literatura
escorrendo pelo
cânone

sei, é deprimente
a cultura pop
subdesenvolvida
dessa triste
américa latina

felizmente
pra aumentar 
minha auto estima
tenho o face

compartilho uma 
frase do Shakespeare

não sei se é confiável
mas é bonita

se quiser comente
mas não critica

a situação da crítica
é crítica

leio e me livro
depois caio
na vida

tem novela às nove
depois jogo do flamengo

na night um show
de samba rock

no corujão vai passar Hamlet


vou assistir
.
.
.
se chegar a tempo




* pic: Glauco Soares

domingo, 23 de junho de 2013

2. Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia: (Manoel de Barros)

a - Esfregar pedras na paisagem.

b- Perder a inteligência das coisas para vê-las.
     (Colhida em Rimbaud)

c- Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se


d- Mesmo sem fome, comer as botas. O resto em Carlitos.

e- Perguntar distraído: - O que há de você na água?

f- Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas de

Mário-pega-sapo era nua. Por isso as crianças e as putas
do jardim o entendiam.

g- Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos, terens
de rua e de música, cisco de olho, moscas de pensão...

h- Aprender a capinar com enxada cega.

i- Nos dias de lazer, compor um muro podre para os caramujos

j- Deixar os substantivos passarem anos no esterco, deitados
de barriga, até que eles possam carrear para o poema um gosto
de chão - como cabelos desfeitos no chão -  ou como um bule
de Braque - áspero de ferrugem, mistura de azuis e ouro - um
amarelo grosso de ouro da terra, carvão de folhas.

l- Jogar pedrinhas nim moscas....

segunda-feira, 3 de junho de 2013

o ROÇA N’ ROLL é (e) o mundo

‘E enquanto viver
Também depois, na luz
Ou num vazio fundo
Perguntarei: até quando?
Até que se desfaçam
As cordas do sentir

Nunca até quando.


Comecinho dos anos dois mil, lembro-me bem o choque que foi meu primeiro Roça n’ Roll, ainda no Sítio Engrenagem. Em tempos de internet discada, entre a fita cassete e o CD, ainda havia espaço para o deslumbre de ver e viver o som, na pele, e não só ouvir em casa ou ver no youtube.

Virver e se perder em meio àquela multidão embriagada, de roupas negras, cabelos longos (o meu na época, nem tanto) era um êxtase. Tenho certeza, sem exageros, que o rumo de muitas vidas são traçados em lugares apoteóticos como esse. Fora os amores e amizades que se fazem e se desfazem aí, a partir daí. 
Algo como pensar, mesmo sem pensar, ou dizer, mesmo sem dizer: “É ISSO! porra.”

Tanto para o menino de então, como para o menino de agora, ainda com o corpo dolorido, a roupa suja e a alma lavada, depois do décimo quinto episódio do ROÇA.

Interessante demais essa capacidade gregária que a música tem, que a cultura de forma geral tem, especialmente quando, sob um signo comum, ela se abre para outras tantas possibilidades. O Heavy Metal, que desdo blues até rock, e daí para o blacksabanismo que se transmutou em tantas expressões, unindo nesse movimento rizomático, o local e o global, aparece aí como chave para se pensar o contemporâneo.

Prova disso foram as três atrações principais desse ano: Grave Digger, Orphaned Land e Tuatha de Danann. O Grave, veterana com mais de 30 anos de banda, dispensa apresentações, o show não deixou nada a desejar, com todos os clássicos que todos queriam ouvir, e a presença de palco inconfundível da banda. Subiram no palco como quem sabe o que foi fazer ali, e fizeram. The clans are still marching.

O Tuatha, junto da lenda cachaceira Martin Walkyier, fizeram um show esperado por muitos. Não adianta, Bruno, Geovane, Berne: NÃO DEIXEM ESSA BANDA ACABAR. Era isso que o público, cantando, pulando, dançando todas as músicas diziam, sem dizer, todo o tempo. O grupo faz uma feliz mescla de música celta, Heavy (doom, death etc.) Metal e principalmente, muita criatividade, tato e talento de cada integrante. Eu vi gente chorando lá no meio, e se isso aí não for motivo para a arte, não sei o que é. Já que ninguém vai salvar o mundo, vamos criar nossos espaços no meio do inferno. Foi ótimo ver vocês de volta, e esperamos que seja outro primeiro passo rumo a um horizonte cada vez mais promissor, que já mostrava seu rosto desde os shows em troca de cachaça no Nove Luas, no Minas Rock. O Tuatha tem tudo pra ser o que um Sepultura, um Tom Jobim, um Villa Lobos já foi e é para o Brasil e o mundo.

Finalmente, o que para muitos foi uma agradabilíssima surpresa: o Orphaned Land. A banda de Israel impressionou com a qualidade absurda de cada um dos músicos, fora o carisma, a presença de palco, e suas composições que mesclam a música do oriente-médio com um prog./doom metal, que transita por diversos gêneros, mostrando que, sim, ainda há espaço para a criação, para o encontro entre os “diferentes”. E para uma preocupação política e humana, junto da produção artística, como eles não se cansam de repetir, inclusive no título de seu novo álbum “All is One”.

A música une. Como os ônibus de Lavras (os últimos, pra variar) que atolaram na lama do estacionamento na hora de sair, e precisou do braço de boa parte dos 100 que estavam lá, detonados, querendo ir pra casa.
Une a seriedade de alguns com piãozagens como guerreiros do star wars invadindo o festival a caráter, fora as presepagens de tanta gente, os causos, e a publicidade que mescla em imagem e linguagem, o tantas vezes cisudo rock n’ roll com o bom humor do interior caipira, onde se vê bem a cara dos organizadores, como o Bruno e o Rodrigo Monstrão.

Felizmente, em meio à vida virtualizada que cresce exponencialmente, ao rodízio de (cultura de) massas, pão e circo que vemos pelas ruas e mídias, esse pessoal, como tantos outros, vão nadando contra a corrente, contra a ‘Cultura’. A neotribalização que junta afins a partir de significantes estéticos e ideológicos comuns, não serviu só para reproduzir padrões vazios, gerar mais solidão prometendo o contrário (a la rivotril) ou incentivar violências (inclusive não vi nenhuma, no festival). Ela pode servir, sim, índios que somos, roots que somos, antropófagos que somos, para criar o novo de novo.

A estética do grotesco, desde Poe e Baudelaire, nos mostrou que o belo vai além do “bonito”, mas está no expressivo. No que agrega, sintetiza, engole e vomita. E aí está o Motoserra, o Cracker Blues, Aneurose, o Kernunna, o Malefactor e tantos outros, berrando isso. Até perder a voz, e encontrar outras.

Entre um vinho barato e outro, entre um murro na cara num mosh e um abraço de quem está se conhecendo ou se re conhecendo depois de muito tempo.



 Saio desse texto, como quem pisou no barro da roça e da criação; e gostou do que viu.

foto: Orphaned Land e alguns de nós
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