segunda-feira, 17 de maio de 2021

@larissa

 




De modo compulsivo, minha irmã postava fotos e mais fotos do corpo esbelto, bem definido, seguidas de frases prontas sobre sua rotina de treino e os fatos banais de sua vida cotidiana. Três anos mais nova e dez quilos mais magra, Larissa era uma celebridade das redes sociais com seu meio milhão de seguidores; eu era a garota tímida, acima do peso, com o rosto pipocado de espinhas, um perfil irrelevante, sem status, sem curtidas. Brigávamos com tanta frequência que a única maneira de manter a paz era evitar qualquer conversa. Assim fizemos por dois anos consecutivos até o dia do acidente que nos separou de vez e para sempre.

Enquanto eu me matava de estudar para ingressar numa universidade renomada, minha irmã se esforçava na busca do físico perfeito. Entre suas amigas de academia, não se falava outra coisa; a mesma devoção que as beatas dedicavam aos assuntos da alma, elas dedicavam aos assuntos do corpo. Falavam entusiasmadas sobre dietas, tabelas nutricionais, treinos de intensidade e da superação dos vícios em guloseimas hipercalóricas. O corpo de Larissa era uma ferramenta de marketing na busca incessante de novos seguidores.

Muitas vezes, meus pais se queixavam do tempo que Larissa gastava nas redes sociais. Minha irmã estava sempre com o celular, fosse no banheiro ou na hora das refeições. Raramente era possível falar com ela sem ser interrompido por uma notificação.

Um dia, andando com fones no ouvido, ao conferir uma mensagem, Larissa não se deu conta de que o sinal havia fechado. O motorista do ônibus freou, mas era tarde demais. No asfalto, o rosto lindo e o corpo esbelto tão bem-cuidado ficaram irreconhecíveis. 

Minha irmã foi velada com o caixão fechado. Houve uma grande comoção nas redes sociais. Os seguidores fiéis de Larissa inundaram seu feed com postagens de carinho e despedidas.

Em casa, minha família agonizava em silêncio, sufocada em lágrimas naquele estágio do luto em que a morte, de tão inesperada, parece irreal. Enquanto minha mãe fortaleceu seu vínculo com a religião, meu pai procurou alívio na bebida, e eu me senti a pessoa mais culpada do mundo pelas brigas constantes que tinha com minha irmã.

Uma semana depois do velório, no meu feed do Instagram, apareceu uma postagem de Larissa. Era uma foto na academia, tirada provavelmente uma semana antes de sua morte, seguida pela legenda: “A vida passa, a morte chega, mas estarei sempre com vocês, meus queridos.”

Seus seguidores, é óbvio, também não acreditaram na mensagem absurda. A postagem causou muita revolta. Fiquei indignada e logo dei início ao processo de exclusão da conta. Quando preenchia os dados solicitados, anexando documentos de comprovação de parentesco e óbito, o perfil enviou uma mensagem.

“Não me apague, por favor.”    

“Quem é vc?”

“Sou eu, a Larissa.”

“Vou desativar essa conta. Minha família e a memória de minha irmã merecem respeito”, digitei, apressada, com as mãos trêmulas de raiva.

Minha mãe também tinha visto a postagem e veio me contar que alguém estava usando o perfil de Larissa.

— Filha, pelo amor de Deus, essa gente não respeita nem o luto de uma mãe — lamentou revoltada, pedindo para que eu desse um jeito de apagar o perfil.

— Não se preocupe, mãe, logo a conta será excluída. Estou preenchendo os dados, é um processo burocrático.

— Queria saber quem é o desgraçado que está fazendo isso! — exclamou meu pai, não se contendo de raiva.

Enquanto nos queixávamos da injúria, o perfil deu início a uma live. Em poucos minutos, milhares de seguidores acompanhavam a transmissão, todos tão indignados quanto nossa família. Meus pais sentaram-se ao meu lado, no sofá, diante do meu notebook. A live estava sendo transmitida de um local escuro. A sombra oculta disse com a voz idêntica à de Larissa:

— Boa noite, meus amores! Acharam que eu ia abandonar vocês? De jeito nenhum. Não deixem de seguir meu perfil, continuem curtindo e compartilhando minhas postagens. Estarei sempre trazendo conteúdo novo para vocês! — A voz fez uma pausa e acrescentou: — Queria que minha família participasse desta live.

Minha mãe levou a mão ao peito, tremia e chorava sem parar. Meu pai permanecia imóvel com os olhos arregalados, como se tivesse ouvido um fantasma.

— É a voz da Larissa, eu tenho certeza. É ela... Deixa eu falar com a minha filhinha — suplicou minha mãe, caindo num choro desesperado. 

— Não, mãe — disse, me contrapondo. — Isso é alguma brincadeira de mau gosto.

— Mãezinha — continuou a suposta voz de Larissa —, lembra a última coisa que a senhora me disse antes do acidente? Pediu para eu não me esquecer de comprar seu remédio e explicou o que estava escrito na receita, porque a letra do doutor César é um garrancho, pior que a letra do meu pai.

Minha mãe implorou, queria de qualquer jeito conversar com a filha falecida. Eu continuava cética, mas acabei mandando um “oi” a fim de mostrar que estava lá e aceitei o convite para participar da live; tudo o que eu queria era desmascarar a impostora. 

— Oi, família! — disse a voz com satisfação quando aparecemos na tela. — É bom ver vocês de novo. Não fiquem tristes. Quero ver minha família unida, como na noite do velório, em que vocês dormiram abraçados na mesma cama. Lembrei quando a gente era pequena e invadia a cama da mãe e do pai com medo de espíritos.

Nesse momento, estremeci de horror, só a Larissa poderia saber desses detalhes íntimos da nossa vida familiar.

— Filha, minha filhinha, a gente sente muito sua falta — disse minha mãe, emocionada. — De onde você está falando? Está no Céu?

A voz não respondeu.

— Filha? — insistiu minha mãe.

— Não estou no Céu nem no Inferno. Estou aqui no Instagram e aqui vou ficar para sempre. A única coisa que eu peço é que não apaguem meu perfil.

Os seguidores de minha irmã haviam se convencido do milagre e digitavam entusiasmados:

“Larissa vive! Deusa do Instagram! Nós te amamos!”

— Não, filha, essa não é a vontade de Deus — disse minha mãe, procurando força em sua fé. — Você precisa ir para onde vãos as almas. Por favor, Larissa. Eu rezei muito por você, aqui não é mais seu lugar.

— É verdade, filha. Você precisa descansar em paz — concordou meu pai, segurando a mão trêmula de minha mãe.

— Não! — gritou minha irmã como se soltasse um rugido feroz. — Se apagarem meu perfil, nunca vou perdoar vocês!

Em seguida, Larissa encerrou a live e nos bloqueou.


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