quarta-feira, 7 de março de 2012

Três tapas na cara, por Manuel Bandeira

Poética
Estou farto do lirismo comedido 
Do lirismo bem comportado 
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. 

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. 

Abaixo os puristas. 
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais 
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção 
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis 

Estou farto do lirismo namorador 
Político 
Raquítico 
Sifilítico 
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. 

De resto não é lirismo 
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar &agraves mulheres, etc. 

Quero antes o lirismo dos loucos 
O lirismo dos bêbados 
O lirismo difícil e pungente dos bêbados 
O lirismo dos clowns de Shakespeare. 

- Não quero saber do lirismo que não é libertação.
...
Nova Poética
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Saí um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida
O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.
...
O bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.
Ecos por un grito (1937) - David Alfaro Siqueiros - Pintor Mexicano

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...