sexta-feira, 30 de abril de 2021

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Relato Selvagem

 

Lá estava o Bar do Wilson me chamando cada vez mais. O Wilson, camarada de tantos goles. Com a pandemia, no entanto, ele pôs duas mesas de plástico na porta de entrada e servia dali as doses de pinga ou qualquer coisa que as pessoas iam comprar lá. Doces para crianças, créditos para celular, até jogo do bicho ele fazia. Wilson era um cara bom. Eu já estava há algum tempo sem beber. Estava dando um tempo com esse fluxo de álcool nas veias que me torcia os miolos até ver tudo rodando.  

Atravessei a rua e comprei um latão de Itaipava. Apesar do calor e da sede, a cerveja não desceu muito bem. Mesmo assim comprei mais uma logo em seguida, após tomar a primeira em duas goladas ali mesmo nas mesas de plástico que protegiam a entrada. A segunda já desceu melhor e uma certa calma foi me paralisando aos poucos ali no bar do Wilson. Não demorou muito pra eu pedir uma pinga, um tira gosto e me irmanar despreocupadamente na alegria benfazeja do Wilson.

Dali a pouco acabei reencontrando os velhos amigos, todos frequentadores assíduos do bar do Wilson. O Pastor chegava falando alto, gesticulando, gargalhando e contando histórias que poucos entendiam, mas de que todos riam, menos o Reinaldo, sempre bêbado demais para entender qualquer coisa. Ficava balançando o tempo todo e com um sorriso de retardado na cara que só tirava para tomar os copos de pinga que ele emborcava de uma só vez, estalando os lábios em seguida. 

Depois da décima cerveja, entornada na mesa, Wilson já tinha entendido que novamente eu só sairia dali carregado e com uma conta tão alta como meu grau alcoólico, pagando bebida e petiscos para todos. Porém, para alegria ou tristeza do Wilson, nada disso aconteceu. Assim que decidi voltar para casa, ao atravessar a pista, um caminhão com os faróis ligados me acertou e me arremessou à metros dali. Senti então aquela  angústia sufocante e derradeira, fechei os olhos e tudo finalmente parou de rodar. 


Felipe Fernandes





terça-feira, 27 de abril de 2021

Casas que não a minha




Saí de casa, devidamente vestida e paramentada para o cenário de epidemia que nos acomete. Sair sendo sempre aquela correria planejada. Fazer tudo que se precisa pros próximos 15 dias, tempo máximo previsto: duas horas. Após calibrar os pneus da minha Biz cansada, seus pneus murchos da tristeza da inutilidade, a primeira parada do rolê.
Uma casa de gente jovem, plantas em vasos e estantes de livros numerosos. Distante e brevíssimo contato presencial humano com alguém com quem não vivo. E já corre, que é preciso fazer tudo antes que chova.
Segunda casa. Paro em frente, buzino, interfono (será a casa 1?), mensageio. Dois trabalhadores da Copasa fazem uma obra nessa rua e o mais velho me avisa:
- Tem gente aí não, moça. O dia inteiro a gente não viu ninguém.
Na caixa dos Correios vários papéis promocionais de supermercado.
- Mas o Maps indicou aqui, só não sei qual das casas... Não devem tá saindo porque tão em isolamento – digo, triste porque é justo aquilo que esses dois trabalhadores não podem fazer.
- É república, tá desocupada.
Me vejo obrigada a recorrer à ligação. Atende, a casa é mais embaixo. Percebo que tem república e tem mais casas, um condomínio azulejado, varandas meio escondidas de mim e do sol.
O cara com quem tenho assunto a tratar me recebe. Entro no portão e me deparo com um sobrado, área de jardim e uma piscina de azulejos amarelos. Pequena e amarela. Jamais tinha eu visto uma piscina amarela.
Dentro de uma janela do térreo, lavando louça, uma senhora me vê chegar.
- Boa tarde! – eu digo.
Sem resposta, ela abaixa os olhos. Resolvo meu breve assunto e, antes de seguir ao portão acompanhada por quem me recebeu, grito:
- Boa tarde pra senhora! – ela continua a lavar a louça, não me responde nem me vê. Não quer me incomodar me vendo nem exibindo sua existência? Ali, naquele lugar amontoado de coisas, lugar que não lhe pertence.
Estranho, que conheço a mãe do sujeito que fui ver e no fundo sabia que dela não se tratava, mas demorei a me atinar.
- Acho que essa senhora não me ouviu me despedindo.
- Ah, a Eva... – e ele me dá um meio sorriso, não explicações. Sem graça?
Saí da casa sentindo o quase olhar de Eva atrás das costas.


 

Cynthia Oliveira




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