terça-feira, 26 de maio de 2020

"Se doer coloque gelo"

Se doer coloque gelo
E um filtro no cabelo.
Sente-se ereta
Às 14.00 quando
O sol der as caras
Pela rede da janela
Mostre a barriga
Sintetize
Seja liquido
Passe o sol nas axilas
Deixe a virilha exposta
Não tem vizinho
Tome um taça de vinho
Ouça canções bregas
Ou o tipo que você gosta
O tempo está frio
O dia nunca esteve
Tão azul
Mistura as estações
Faça café
Molho de pimenta no pão
Frite o ovo
Lave o edredom
Use Vick
Use meias desiguais
Cuidado com o açúcar!
Isso marca sua cara
Envelhece; não de forma legal
Passe batom, ou cacau
Nívea creme
E sonrisal.
Desodorante corporal
Pouco sal.
Enfim.
She's going.



Valéria Duarte

quarta-feira, 20 de maio de 2020

O leão íntimo


Quando chegou, ainda era um filhote e podia facilmente ser confundido com um urso de pelúcia. Porém guardávamos certa distância dele e por mais que parecesse inofensivo, ninguém tentava tocá-lo. Admirávamo-lo de longe, dizendo “que leão mais bonitinho”, enquanto ele mordia um pneu velho ou rasgava pedaços de papelão com suas garras pequeninas. Tinha um pelo cinzento e felpudo e seus olhos eram sempre frios e num certo sentido calculistas. Durante os primeiros anos dificilmente o víamos rugir. Às vezes, quando tinha fome ou se sentia enfadado, abria a boca e rosnava de um jeito dócil e ameaçador ao mesmo tempo. Quando comia também rosnava, abraçado a grandes pedaços de carne com uma fúria contida.
Alojamo-lo no pátio interno da casa, onde podíamos sempre vê-lo. Quando não estava dormindo, passeava pelo pátio, forçando as grades e raspando o chão com os dentes. A cada dia
parecia estar mais forte. No segundo mês, seu pelo havia se tornado mais amarelado, já adquirindo a cor que viria a ter por toda a vida. Quando mais o tempo passava, mais a distância entre ele e nós crescia. O que a princípio julgávamos medo deu lugar a uma grande fúria de qualquer um que dele se aproximasse. Com três meses era já um leão maduro e assustador, com um juba imensa e dentes enormes.
Meu pai acreditava que podíamos domesticá-lo mudando sua alimentação e através de uma convivência mais próxima com seres humanos. Mas logo percebemos que havia algo nele que nós não conseguiríamos mudar. Certo dia em que andávamos a passear comeu o cachorro da minha mãe. Quando ela viu a calda do Lulu presa nos dentes do leão, criou um ódio mortal pela besta (como ela passou a chamar o leão) e gritou para meu pai que seria necessário sacrificá-lo imediatamente. Meu pai porém foi absolutamente contra, dizendo que isso seria um crime. Minha mãe argumentou que então o levasse de volta para a África ou o doasse para um zoológico ou que o mandasse para o inferno. Mas meu pai, sem aceitar qualquer argumento razoável, disse que isso estava fora de cogitação, e enfatizou que nunca mais voltaria à África.
Meu pai sabia que dentro de dois ou três anos ele estaria com um porte muito maior e que seria impossível domesticá-lo, com seus instintos de caça já praticamente formados. Qualquer descuido e um de nós poderia ser sua vítima. Seria necessário estar sempre reforçando as grades do pátio interno para que ele não entrasse em casa. Minha mãe sugeriu que instalássemos uma câmera no pátio e o monitorássemos ininterruptamente. Após o incidente com a poodle, meu pai resolveu construir um muro muito mais alto que cercasse o fundo do pátio interno, pois esta parte dava para a rua, e assim nenhum outro bicho poderia entrar lá e o leão ficaria completamente isolado.
O leão suportava a tudo com grande indiferença. Parecia mesmo que não se importava com o que fizessem dele e que nossa existência lhe era completamente indiferente. Quando às vezes nos olhava, era com um profundo desprezo, como se não passássemos de empregados responsáveis por alimentá-lo, o que de fato éramos. Não sei porque nesse instante comecei a pensar no leão como um ser diferente. Comecei a sentir por ele uma espécie de afeição e companheirismo. Senti toda sua dor em permanecer preso durante todo dia naquele minúsculo lugar, um caixa ridícula comparada às planícies das savanas africanas onde podia percorrer livremente, alcançar seu alimento e reinar impávido.
Quando atingiu a idade de 2 anos, o Leão estava completamente desenvolvido. Media quase um metro de altura e sua juba era digna de uma realeza. Os pneus que jogávamos para que se distraísse mordendo se amontoavam num canto do muro, onde às vezes ele ia se deitar. Minha mãe simplesmente ignorava-o completamente, e por causa disso nunca o deixávamos sozinho com ela, pois sabíamos que ele acabaria morrendo de fome. Ele lutava por seu espaço e estava disposto a matar ou morrer por ele, mal nos aproximávamos das grades bem reforçadas do pátio. A impressão que se tinha é que se alguém entrasse ali e saísse com  vida ia ter desejado pelo resto da vida nunca ter entrado.
Apesar de todos os alertas que já haviam sido feitos sobre a atenção que era necessário ter quanto a porta que separava o pátio da casa, certo dia alguém a deixou aberta. Apenas depois pensamos na possibilidade de o próprio leão haver forçado o portão. Assim que o vi passar pela porta, tive tempo para alertar a todos a saírem da casa, porém ele conseguiu me alcançar. Lambeu minha mão e não tive como deixar de acompanhá-lo ao pátio interno.


Felipe Fernandes

terça-feira, 19 de maio de 2020

Dias de Pentecostes

Chegando o dia de Pentecoste,

chega o dia hoje, chega o dia ontem, chega o dia amanhã, nas ruas chega o dia, nas praças chega o dia, no meio do boteco, chega os dias como chegam os dias de menstruação e da morte, chega os dias nas padarias e supermercados, chega o dia fora do mercado, chega o dia na sarjeta dos bolsos, chega o dia depois de alguns nojos, chega o dia na capital do Espírito Santo, chega o dia em jardim América, Cariacica e Vilha Velha, chegando o dia de tantos, chegando o dia de pentecoste

estavam todos reunidos num só lugar.

estavam todos atoas e sincer0s num só espírito, estavam todos trabalhando num mesmo espírito. estavam as mulheres, os estrangeiros, os pobres, os príncipes convidados e os cavalos dos príncipes, estavam as pedras dos montes e a sujeira dos pés dos viajantes, estavam os doentes, palestinos, israelitas, estavam os empresários, os empregados, os desempregados, estavam os forasteiros e os brasileiros, estavam os negros, os pobres, os brancos, os mestiços, os latinos e os americanos, estavam as crianças e as brincadeiras de crianças, estavam os ladrões gente de bem gente ladrões bem, estavam os crentes e os curiosos, os interesseiros e os famigerados políticos, estavam os ausentes e os preenchidos, as anônimos e os estranhos, estavam os discípulos de Jesus e as testemunhas de Jeová, estavam todos num só lugar

De repente veio do céu um som,

De repente veio do céu uma bomba, veio do céu uma guerra, veio do céu uma união e uma separação, veio do céu as aves migratórias, veio do céu uma canção divina, veio do céu um anjo em forma de demônio, veio do céu a expulsão, veio do céu um filho, veio do céu o sentimento do trovão, veio do céu uma agitação, veio do céu o apocalypse e a voz de Deus criando o mundo, veio do céu uma banda de instrumentos tocando funk, ópera e heavy metal, outros estilos, veio do céu uma afinação, veio do céu um som

como de um vento muito forte,


como de um sopro de vida, como de uma respiração boca-boca, comode um beijo virgem de Cristo, como de uma brisa forte para empinar pipa, como de um ciclone a quebrar as praias e as cidades, como uma mãe em maremoto, como um ventilador de parede ao extremo, como de vidas voadas, como de uma tempestade de verão, como de um secador de cabelos, como de uma balão estourando, como de um furação, como de um vento muito forte

e encheu toda a casa na qual estavam assentados.

no qual estavam descansados, no qual estavam dormindo, no qual estavam comodismo, no qual estavam em posição de agachados, no qual estavam intactos, no qual estavam inoperantes, no qual estavam budistas e islâmitando, no qual estavam prostados como pedras, no qual estavam abandonados sobre si mesmo, no qual estavam imóveis, no qual estavam estavam prespreocupados, e encheu toda a casa no qual estavam assentados

E viram o que parecia línguas de fogo,

o que parecia línguas de enxofre, o que parecia a boca de fogão acesa, o que parecia o idioma dos oprimidos e dos oprimentes, o que parecia setas queimando no ar, o que pareciam bambolês azuis e amarelos, o que parecia a íngua que dá nos humanos, o que parecia um pedaço de pano rasgando-se, o que parecia a visão dos varões nas assembléias de Deus, o que parecia o surrealismo de Dali e o inferno de Dante, o que parecia uma obra barroca derretendo-se, o que parecia a dominação do vermelho, e viram o que parecia línguas de fogo

que se separaram e pousaram sobre cada um deles.

Os pentecostes El Greco
e cada um deles. e pousaram como pássaros que encontram refugio, e pousaram como quem pula de para-quedas, e pousaram como quem não tem casa e descansa nas favelas, e pousaram como uma folha quando cai da arvore, e pousaram sobre cada cabeça abaixada e levantada, e pousaram sobre as costas dos que já não se levantam, e pousaram sobre os que não eram concursados, e pousaram sobre os que eram santos e pecadores, e pousaram sobre os viúvos e recém-casados e pousaram sobre os solteiros e os despreparados, e pousaram sobre os menos atraentes, gordos, estranhos, fora dos padrões de sansão, e pousaram sobre os que eram diversos e vários, sobre os que estavam distante de Deus e sobre os que deixaram de assistir o programa do Silas Malafaia, pousaram sobre os gringos, pousaram sobre cada um do gueto, da periferia, do medo, pousaram 

Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito os capacitava.

 And they were all filled with the Holy Ghost, and began to speak with other tongues, as the Spirit gave them utterance. 

Y fueron todos llenos del Espíritu Santo, y comenzaron a hablar en otras lenguas, como el Espíritu Santo les daba que hablasen.

(Atos 2: 1-4)

Clélio Souza



segunda-feira, 18 de maio de 2020

Sou um com o mundo

Sou um com o mundo,
Isto é, também jazo
em leitos ignorantes
tal e qual os pensamentos
ao meu redor
Jazem de ignorância.

Quero morrer na noite
Quando tudo virar pizza,
Ou picanha na brasa.
Essa eu quero mal passada,
sempre.

E agora o aguardado momento:
De ver o pau cair as folhas,
tudo em questão de segundos.
amargo sorriso de língua

Pode ser C.P.I
Churrasqueira acesa 
Pipoca no microondas
Na manteiga tudo desliza
Fácil até demais.

Não me importam 
Esses engravatados
Desde que me sirvam, tudo bem.

Eduardo Guimarães


                                                      Foto: Vinicius Tobias
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