sábado, 31 de março de 2018

Conheça William Carlos Williams

*Tradução de José Paulo Paes

A uma velha pobre


mascando ameixas pela
rua um saco de papel
cheio delas na mão

Elas lhe parecem saborosas
Elas lhe parecem
saborosas. Elas
lhe parecem saborosas

A gente pode ver isso
pelo jeito dela
se concentrar na fruta
meio chupada

Satisfeita
um gosto de ameixas maduras
como que enchendo o ar
Elas lhe parecem saborosas


* * * 

O lavrador


Perdido em pensamentos o 
lavrador passeia sob a chuva
por seus campos vazios, mãos
nos bolsos,
na cabeça
a colheita já plantada.
Um vento frio vem encrespar a água
entre as ervas tostadas.
Por toda parte
o mundo rola friorento para longe:
negros pomares
escurecidos pelas nuvens de março - 
deixando espaço livre aos pensamentos.
Lá embaixo, além da galharia 
rente
ao carreiro encharcado de chuva
assoma a figura artista do
lavrador - compondo
- antagonista


*  *  *

Nada ter feito


Não não é isso
nada que eu tenho feito
nada
que eu tenho feito

é feito de
nada
e o ditongo

eu

seguido da 
primeira pessoa
do singular
do indicativo

do verbo
auxiliar
ter

tudo
que eu tenho feito
dá no mesmo

se fazer
é capaz
de uma 
infinidade de
combinações

envolvendo os 
códigos

morais
físicos
e religiosos

pois tudo 
e nada
são sinônimos
quando

a energia in vacuo
tem o poder
de confusão

que só
nada ter feito
pode fazer perfeito


* cena de Paterson, filme de Jim Jarmusch
composto sob forte signo do poeta
William Carlos Williams

domingo, 25 de março de 2018

Jandira - Murilo Mendes

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo.
(Às vezes o braço esquerdo desaraparecia no caos)
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés.
Todas as  partes do corpo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo de seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.

E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas
Não caía nem um fio.
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal da cruz por causa de Jandira.

E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova,
Apareceram ritmos que estavam de reserva.
Combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o princípio dos tempos.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia da gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas que ela.
E Jandira não morre,
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E, mesmo que venham, o corpo de Jandira 
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.






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