Andava pelas ruas barrocas de Tiradentes, depois de sair de uma pequena espera por um sarau burguês que não começava pois estava absolutamente esvaziado com um poeta da capital e zero de público (ao contrário dos saraus que os grupos locais que eu participava organizavam na região, sempre com um um público cativo) entrei num boteco com uma amiga, pedi uma cachaça, e enquanto o garçom servia resolvi vender meu livreto recém-lançado para um camarada, ele tinha uma pose de intelectual, alguma deficiência na mão, uma cara empolgada e vermelha e se encontrava na companhia de dois jovens bem vestidos com seus figurinos cult. Era meu primeiro zine impresso, tinha tomado cuidado em fazer um material responsa, uma vez que o 4º Capítulo da Série Intervenção Humana eram conjuntos de quadras e fotos coloridas organizadas na tentativa de causar algum tipo de catarse cognitiva por um desencaixe aparente e uma coesão sutil entre as esferas semióticas do discurso. Além de ser meu primeiro trabalho impresso, era também meu trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social na UFSJ, o que significa que havia feito um trabalho monográfico evidenciando as esferas do discurso e as implicações de enunciação que meu trabalho pretendia suscitar. Considerem que eu me esforcei e tentem fazer a inflexão: qual vocês acham que foi a reação do cavalheiro quando entrou em contato com meu trabalho em couchê colorido, o qual apresentei de maneira bastante humilde? A maior tentativa de humilhação de alguém que já presenciei, me chamou a tragar cachaças e insinuou que eu estava querendo trocar o livreto por aquelas doses, o homem estava possuído por uma agressividade louca contra mim, me inquiria sobre poesia e sobre minha incapacidade para a atuação enquanto poeta, então comprou "pra me ajudar", perguntando se a cachaça já não havia pago, no fim, eu que tentei ser gentil o tempo todo desejei "que tenha uma boa leitura" e ele não acreditava nas minhas palavras "acredita que eu possa ter prazer ao ler isso?" eu respondi "depende mais de você do que de mim, depende de você abrir esse coraçãozinho amargurado", nesse ponto eu tive que dar uma corrida porque ele tentou me acertar com alguma coisa. Outra vez, um cara tentou me dispensar com uma nota de cinco, e eu disse "bom cinco é o fanzine, o livro é vinte" ele me deu vinte e disse que não queria comprar, era só pra que eu fosse embora, outra tentativa suja de humilhação, dei três passos cabisbaixo, com o dinheiro na mão e depois levantei-a e pensei "brother, quem quiser me dar esmola tem de pagar o meu preço - há!". Numa outra ocasião um cara do círculo universitário simplesmente lambeu meu livro, sério, ele pegou e passou aquela língua áspera e branca sobre toda a superfície, ridículo, como alguns macacos que cagam no território do outro. O que liga essas três manifestações? Nenhum dos ultrajadores se deu ao trabalho de ler o material.
Há um convencimento geral da incapacidade de se fazer arte, trabalho intelectual, literatura, filosofia, da incapacidade criadora, de conceber que "o que não é considerado genial por todos é lixo". O simples fato de alguém ter que representar o lixo que aquilo é (o simples fato de isso não estar dado) já mostra que estamos em território franco. Essas pessoas que tentaram de alguma maneira me rebaixar tinham uma coisa em comum comigo, a convivência com a cultura, com a literatura. Eles estavam convencidos que qualquer um que não estivesse blindadamente protegido pelos mecanismo sociais que legitimam a produção deveriam ser considerados medíocres. Mais do que isso, havia uma raiva latente, como se eu estivesse pulando etapas, na visão deles eu simplesmente estava descartando toda a parafernália da indústria cultural e apresentando meu trabalho sem nenhum grau de seleção e garantia de qualidade. Como se as justificativas para a melancolia daqueles que acreditam sem saída para o desenvolvimento de sua arte e cultivam uma fedorenta gaveta estivessem sendo cruelmente destruídas por minha prática, os tornando além de impotentes, sem desculpas para a própria impotência. No entanto, quem prestou atenção de que este também foi meu TCC, e mais, em quem leu as informações da publicação, inferiu que ele foi aprovado por três Professores Doutores, com louvor. Qual é o valor disso? O mesmo de um editor, ou seja, de uma seleção e aprovação por alguém considerado capacitado, estamos falando de dispositivos de legitimidade.
"vão te falar que é a qualidade (...) não é a qualidade, a qualidade para alguém com essa mentalidade eunuco de civilização sempre parecerá uma abominação cada vez maior, uma maquiagem cada vez maior, um blefe cada vez maior"
O ponto que quero chegar é o seguinte: vão te falar que é a qualidade e que seu material é xerocado, não é a qualidade, a qualidade para alguém com essa mentalidade eunuco de civilização sempre parecerá uma abominação cada vez maior, uma maquiagem cada vez maior, um blefe cada vez maior. Vão te falar que é o valor literário filosófico, estético, etc. Mas não é, há nas pessoas com essa mentalidade a propensão de não se atacar de imediato algo nesse formato, de apresentar mesmo uma má vontade com um material com o qual se identificaria. Meu palpite, o palpite de quem já enfrentou a rodo o discurso do "isso não vale nada porque isso foi empacotado por você e não outro alguém a quem alienou esta etapa crucial), é que esse ódio é semelhante ao dos homens que se sentem seguros que as mulheres de sua família mantenham-se controladas pelas restrições da realização sexual que as tornam dependentes; então quando esses homens vêem-se na proximidade de uma mulher liberta sexualmente e partem a desclassificá-la e dirigindo difamações contra ela. Há um medo aí, há um temor por si, há um temor de que aquela pequena esfera de poder que ocupa por ter mais liberdade sexual seja desmembrada pela realização sexual de uma desconhecida assim como que os poucos louros de um capital cultural pouco efetivo seja desvalorizado por vontade e excitação juvenil. É algo mesquinho? Pode ser, mas é legítimo também, ela traduz uma falta de capacidade de se portar em outros contextos, de crescer com o desenvolvimento do próximo, ela não pode ser desprezada, esse medo da inversão de valores é um caminho a se trilhar.
A esse material impresso, no entanto, faltam ainda uma série de adequações, como registro na Biblioteca Nacional, ficha catalográfica e algumas convenções editoriais que o transformam em um fanzine impresso em gráfica e não em um livro. Mas, sem dúvidas ele carrega em si mais legitimidade do que os meus anteriores xerocados. Essa é a chave do porque eu enfrentei mais oposição nesse, no bonito, do que no anterior. Agora eu estava com algo a não ser "naturalmente" inferior, mas algo que bancasse a batalha. Bom, conheço alguns poetas na mesma condição que a minha: fizeram fanzines no começo de sua prática e logo depois partiram buscando áreas de atuação como que "mais conceituadas", pessoas que sempre me disseram que fanzine era uma coisa menor e como que "respiraram" quando eu finalmente fiz algo mais adequado. É compreensível, da parte desses artistas, o desejo de expurgar o lugar infame no qual foram colocados quando excitados e juvenis, como eu, jogaram seus corpos no mundo. No entanto, considero lamentável essa reprodução do discurso opressivo, é triste que quando se trate de fanzine essas pessoas que em outras áreas considero grandes exemplos para mim e que já passaram por isso encontrem na frase "bom isso é um fanzine, você pode fazer algo melhor que tenha mais marcas da indústria cultural" como o melhor a dizer quando entram em contato com pessoas mais novas a lhes mostrar seus zines. É claro que não exijo de todos essa disposição Jesus Cristo que eu acabo tendo de receber um tapa na cara e virar a outra, não nego que ser como um ponto de converg~encia para o desenrolar do discurso opressivo e do desejo de impotência do próximo seja um papel que eu assuma com orgulho. Pô, mas não é entreguismo isso, desclassificar a prática quando ela é crucial para a sua história? Não é jogar a toalha de frente ao primeiro obstáculo? Não é, como dizia Torquato, neto, cortar o cabelo quando a barra pesa?
Quero apresentar uma outra visão sobre os fanzines, que não o considere como algo de 5ª categoria (se não o for) mas também não o tenha como heroico apenas por ser algo assim como marginal. Ver a publicação artesanal dentro de suas limitações e potencialidades. Tirar ela desse ponto puramente contestador do status quo significa, penso eu, vencer. Essa será a conclusão, mas, antes é importante notar que é ao inaugurar esse valor do "algo que existe no mundo" entram em marcha o terceiro hall de adversários (não inimigos), que não obstante respeito muito, os punks e tudo que vem desse movimento e tem o fanzine enquanto um veículo, os anarquistas, as feministas, os veganos, etc. Parte da galera sob a influência dessas visões de mundo, que eu também compartilho (mas com o ícone adotado do anarquismo, Camus, apreendi a impotência da afirmação absoluta de algo em um par de opostos) às vezes me combate levemente pelo fato de meus fazines terem um preço, de até mesmo na minha linguagem serem "vendidos" e não "passados".
Não quero me alongar muito nisso, mas qualquer olhar mínimo frente a publicação artesanal percebe que ela serve a diversos fins, é um erro e mesmo uma tentativa de tolhimento de liberdade querer que sempre o fanzine sirva para a militância, mesmo sabendo que ele é um lugar privilegiado para isso. Dentro do movimento de poesia que eu participo existem fanzines muito próximos entre si que apresentam diferentes formas de distribuição, e essa maneira de distribuição muda bastante o que a publicação quer dizer enquanto publicação. As pessoas fazem como uma revista que lançam uma ou duas vezes e aí se esquecem delas, e usam a venda para isso, além de anunciarem nos meios de comunicação o lançamento, sempre acompanhado de um recital ou performance. Outra possibilidade que acontece é a de se fazer a edição como um "pacote" para mostrar os poemas para os amigos e então distribuem, e, mais raro do que isso, alguém faz uma performance poética e faz um zine para que as pessoas possam acompanhar o recital. Já eu quero ter uma produção perene, quero sempre os meus fanzines na minha bolsa para que as pessoas tenham acesso à minha escrita em diferentes momentos, penso que assim elas farão leituras mais contundentes, além de que, dessa maneira, consigo alcançar alguma eficiência na distribuição, devagar e em longo prazo. Daí vender é uma maneira de entregar a só quem vá ler. Não importa o que se faz com ele, o importante é que a publicação artesanal tem o papel ímpar de preencher lacunas da dinâmica social de um nicho, de forma que as pessoas que têm potencialidades possam desenvolvê-las onde se sintam participativas e engajadas gerando a força e o ânimo para que aquilo que é difícil de ser realizado (uma vivência filosófica verdadeira, estudo e produção de poesia, formação de um grupo de contestação, etc.) frente a uma lógica instrumentista da vida. A mídia nanica nesse cenário permite que essas vivências se tornem, além de viáveis, realidades sociais de vivência.
Penso ser aí o lugar da publicação artesanal. Nesse ponto, é importante constatar que há, sim, um enorme número de fanzines de péssima qualidade, as perguntas que me faço quando alguém traz esse dado para a discussão são: qual é o real problema disso? Isso invalida aqueles mais coerentes? A exposição não pode ser um caminho para a melhora? Na minha experiência tenho visto que aqueles que não levam a prática a sério não têm a mesma repercussão e são levados ou a procurar algo mais o que fazer ou a estudar. Acho isso só produtivo. Quanto à recepção do público acho interessante quando alguém nem despreza o zine por ser zine nem o louva por ser marginal, mas gosto quando a pessoa analisa se quer ler aquele material ou não, seja lá a que decisão chegar.
Nesse entre-lugar, nesse meio termo, esse tipo de publicação só tem o que somar. Todos reclamando da falta de cultura e do cultivo da mediocridade, pois bem, respeitemos os espaços que as pessoas têm para que adquiram informação, onde tenham a possibilidade de serem lidas e criticadas e onde é possível um desenvolvimento das práticas mais sucateadas e importantes.
*pic: minha coleção de zines
Póstexto
Um poema. Refletindo a beleza da tomada de palcos elitistas que reivindicam para si o título de "malditos". Anti-malditos, tomamos o palco (que era livre): os poetas da capital correram, alguém mostrou a bunda e fomos aplaudidos não por obrigação, mas por entusiasmo. Há algo na poesia que as editoras não dão conta, onde os produtores de evento tropeçam, que docilidade não apreende e com a qual a voz lida maravilhosamente, tanto que se gasta e enrouquece.
Dia 27/11
essa noite eu tive um sonho bonito-macabro
onde trolls literários intelectuais
foram literalmente expulsos do palco
e o verdadeiro pulso, o da calçada
saqueou todos pelas suas entranhas ensanguentadas
e rapazes bonitos sem pé nem cabeça
deixavam seus cus expostos na feira burguesa
então conflitos recentes feitos para durar a vida inteira
foram quebradas por simples ações recíprocas de boa vontade
aliás, o que não foi quebrado naquele sonho do dia 27?
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* texto publicado na revista artesanal Interpretes da Decadência nº3, disponível para download aqui http://interpretesdadecadencia.blogspot.com.br/?view=classic.
aliás, o que não foi quebrado naquele sonho do dia 27?
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* texto publicado na revista artesanal Interpretes da Decadência nº3, disponível para download aqui http://interpretesdadecadencia.blogspot.com.br/?view=classic.